Rrrooonnngggrrr

É gostoso acordar assim. De mansinho. Devagarinho. Sentindo o mundo existir aos poucos. Os pássaros continuam aquela sinfonia matinal “piupante”, irritante, incessante. Meus ouvidos são os primeiros a abrir os olhos. Ouço tudo não vejo nada. Me localizo no tempo e  espaço. Este silêncio “piupante” é meu Xangrilá. Começo a sentir os pés gelados e uma dorzinha – companhia de uma vida inteira – se instalando e se irradiando rapidamente. Ainda de olhos fechados – me nego a acordar – apalpo ao redor em busca do cobertor, do edredon, da gaveta, do Biofenac DI. Não tem jeito, tenho que abrir os olhos ou tomo Serenus, Tandrilax, Lexotan ou Icaden em óvulo, por engano. A cabeça, aos poucos, sai da roda e do rodopio dos sonhos. Pareço uma bêbada de ressaca. Mas não bebi nenhuma gota de álcool nos últimos – conto dedo a dedo – onze dias. O estômago rrroooonnnggggrrrr e o fígado iiiiiuuuuuuggggghhhh. Tico e Teco, a ala neurológica, estão discutindo quem vai religar a máquina. O CNC – comando nervoso central – está de férias, em greve, sob assalto, fora de combate.  Mas não tem jeito. Estou acordando. Deitada de lado, já bem cobertada e sedada – o hábito e a necessidade mensal instalaram a associação Biofenac DI = Fontol infantil. Em jejum, sem água, qualquer hora, lugar, situação, apenas a trégua das agulhadas – e aquele pratinho triangular com restos de torta caem como as imagens de uva, maçã, cereja e o X, no aparelho caça níqueis. As fatias do bolo de chocolate amargo embatumado e gelado mesclado com amendoim e pelo suposto biscoito Maria embebido ao rum, mais o pinhão, os docinhos da D. Helena. Melhor não lembrar do que mais. Entrei num transe açucarado. Ou coma diabético. Orgia? Ou puramente, simplesmente e infelizmente, outra recaída. Esta constatação me faz sentir – imediatamente – o acoplamento. Vem à mente a cena de Arnold Scharzenegger, naquele filme futurista, na plataforma de embarque, em que transmutado de mulher seu rosto é substituído por camadas e camadas e camadas de pedaços de metal. Como se chama? O vingador do Futuro? É um filme antigo. E só lembro dessa cena, nada mais. Nem enredo, nem coadjuvantes. Nada. Memória deletada. Mas em vez de desacoplar, sinto-me acoplando células infladas nas coxas e cintura, recuperando os míseros centímetros perdidos. A cabeça doi. De gripe e culpa. A cólica aumenta e me lembra do culpado de tudo. TPM. A cena do prato obceno de chocolate negro me provocando, espoca na memória. O ataque irrefreável e indecente e a lembrança indelével nesta manhã pesam dolorosamente. No corpo e na alma. Acordei. O corpo se agita e se impõe. Quer coisas. Quero dormir e esquecer.

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