O dia D

Dia 06.12. 2011 – 7:30h; Hospital Dia Mãe de Deus,  Porto Alegre – RS

O dia amanhece nublado e chuvoso. Minha noite e meu dia se misturam, assim como o dentro e o fora mesclam-se confusos. O tempo se perde na ansiedade e na apreensão. Afinal, o tão esperado e temido dia chegou.

Cheguei cedo. Na verdade, há dias eu vinha bisbilhotar, mesmo contra minha vontade. Cabeça e corpo se dividem e o que um quer o outro não necessariamente compartilha. Minha mente – uma rebelde voluntariosa – sobrevoava o cenário assim como beija-flor beija a flor. Apenas petiscava e ia embora. Mas vinha – e nesse vir – agitava o corpo e as ideias. Assim, o corpo acordou às 3 horas, estranhando a cama e o agito. Uma dor de cabeça lancinante mostrou seu desespero. Meu corpo sabia sem saber que algo estava acontecendo e gritava alucinadamente esperando saber. Achei que ele fosse gostar de uma conversa no calor das mãos e no toque suave dos dedos. Mesmo cedendo em intensidade, ele continuava assustado e atendi uma exigência antiga – um gole d’água e uma Neosaldina – algo conhecido frente ao desconhecido. E muita conversa, troca de energia e carinho. Como explicar a meu corpo guerreiro que decidira reformá-lo? Como explicar que estes 3 meses de privação calórica e desgaste físico foram insuficientes? Como explicar a um corpo atento e seguro de si que ele não mais se bastava? Difícil.

Fui pelo caminho mais fácil e justo. Hora de agradecer a vida gerada. Meus filhos, o maior tributo e orgulho. Obrigada, por acolhê-los tão bem!!!! Minha saúde – sua maior característica – permitiu–me uma família, trabalho, estudos, viagens, hobbies, prazer, emoções, amigos. Obrigada por todas estas bênçãos!!!!!! Tanto a agradecer. Não seria nada sem ele. E, apesar da decisão tomada, sempre gostei do seu jeito cheinho, fofinho e gostosinho. E, ele sempre soube. Nos divertimos muito juntos. Sofremos muito também. Amamos demais. Sonhamos demais. E, o mais importante de tudo, podíamos contar sempre um com o outro. CorpoCabeçaMenteAlma. Um ser só. Absoluto.

Prometi a ele, após quase 50 anos, que ele merecia uma repaginada. Para os próximos 50 anos. Que venham os decotes, biquínis, calças jeans, vestidos e saias à cinturados. Decentes ousadias para a maturidade que se estende e desfila na passarela da vida. Prometi cuidá-lo e amá-lo como ele merece, e mostrar o quanto sua essência é agora devidamente espelhada. Decidi mostrá-lo sem armaduras ou camadas de proteção.

Por isso, agora, sentada na cama hospitalar da sala e recuperação – enquanto observo enfermeiros entrando e saindo, camas chegando e se indo, pacientes chamando reclamando ou gemendo, outros enfermeiros conversando, separando medicações, atendendo um aqui outro ali, olhando pastas, conferindo funções vitais, trabalhando em 360 graus – continuo a conversar e acariciar meu corpo   (apenas remodelado). Continua o mesmo. Um guerreiro. Sinto ele se acalmar com o antigo toque das mãos, da fala doce e das cócegas macias. A dor, o estranhamento, o choque. Imagino como ele se sente: Roubado, vilipendiado, trapaceado e enganado ingratamente. Por isso aceito abnegada e pacientemente sua reação. Retribuo com compreensão e carinho.

Afinal, levei quase 10 anos para decidir me repaginar. Como posso esperar que ele aceite minha decisão, se aceite e se goste, em apenas alguns dias? Dei a ele de 3 a 6 meses. Ele costuma reagir bem dentro deste prazo. Eu aguento.

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