Não sei o quê, nem como aconteceu. Tudo aconteceu numa fração cósmica de tempo que não deu tempo sequer de pensar ou entender. Quando percebi estava assim: Solto. Só isso. É só o que sou agora. Solto. Já me sentia assim há muito tempo, mas agora sou sempre assim. Lembro-me de um Beto que não existe mais. Não o sinto mais. Gostava dele, apesar do jeito impetuoso, arrogante e prepotente. Foi criado assim. Era rico, casou-se rico e ficou multimilionário. Tudo o que queria, tinha. Esposa, filhos, casas, carros, motos, aviões, viagens, dinheiro. Muito, mas muito dinheiro mesmo. Podia fazer o que quisesse. Quando quisesse. Os limites praticamente não existiam. Apenas os morais e que nem faziam cócegas. Afinal, o que é a moral, no fim das contas? Lembro de uma vida transbordante e ao mesmo tempo de um vazio abissal. Pra sentir a emoção de viver, ousei cada vez mais. Tornei-me audacioso, teimoso e tenho que reconhecer: muitas vezes, um grandecíssimo irresponsável. Perdi dinheiro a torto e direito, ganhei do mesmo jeito, e quer saber? Grande coisa, era apenas papel. Só não fui pra lua, a Terra eu vasculhei todinha. O que me interessava fui conhecer. E gostei do que vi e conheci. Mas cansei de malas, hotéis e restaurantes. Cansei de compras e puxa-sacos. Cansei de ir e vir. Cansar não é bem a palavra. Era ligado na tomada a 220 W, 24 horas por dia. Acabei me entediando da rotina de viver. Precisava sempre de mais, e quanto mais eu tinha, mais eu precisava. Mesmo assim, eu nunca me satisfazia. Sempre faltou algo. Será que ter tudo dá essa sensação de incompletude e falta? Meu casamento era um casamento. Apenas isso. Dormir e acordar juntos, acertar agendas. Meus filhos cresceram e foram minha vida até saírem de casa e terem sua própria vida. Raramente ligavam para mim. Também estavam sempre envolvidos com suas agendas e seus compromissos. Entendo isso. Fiz o mesmo. Meus amigos, eram realmente meus amigos? Tenho minhas dúvidas. Ficou complicado separar a riqueza, as oportunidades e tudo que advinha de ser meu amigo. Nem eles nem eu conseguia mais entender esta equação. No fim, éramos um grupo que ficava junto. Eles pelos motivos deles, e eu, pelos meus. E quais eram os meus motivos? Medo da solidão? Necessidade de demonstrar poder? Amizade verdadeira? Sinceramente, não sei. Sei que resolvi viver do jeito que eu queria. Os outros que se danassem. Se quisessem estar comigo, era do meu jeito. O único jeito. Quando André me disse que NÃO devia fazer piruetas com meu novo brinquedo de asas, naquela manhã ensolarada, depois daquela reunião em que simplesmente boicotaram e sabotaram minhas ideias – mirabolantes, tenho de reconhecer – eu simplesmente NÃO aguentei. Precisava fazer o que eu quisesse. Os NÃOS que ouvi foram demais para minhas emoções e resolvi que nada nem ninguém seguraria meus pés no chão. Fui voar, indiferente a tudo que me disseram. Disso me lembro. Tentaram me segurar, mas fui arrogante e prepotente e mostrei quem mandava naquela espelunca. Fiz meu voo mais alto e assim cheguei aonde estou. Solto. Suspenso num lugar sem dor, sem prazer. Sem nada, nem ninguém. A sensação é estranha. Diferente. Busquei freneticamente por sentimentos únicos a vida inteira e nunca os encontrei, e de repente, me encontrei na morte.