A morte quer ser respeitada

Cada início de ano, entre brindes e desejos de paz, saúde, sucesso e felicidades, um cantinho meu se desespera, pensando nas tragédias e perdas irreparáveis que o ano  reserva. Porque, enquanto festejamos, a morte – que não tira férias e não faz ideia do que é ano novo ou ano velho e vive na eternidade – continua trabalhando, tramando, planejando e matando. Os motivos, certamente são muitos. Que critérios ela usa? Posso apenas imaginar. Imagino que alguns ela leve por ser a hora de ir, outros por não merecerem viver, outros por já terem cumprido sua missão, etcetcetc. Mas também acredito que muitos são levados para servirem de lição. São os antigos sacrifícios humanos remixados, costumizados, modernizados e impetrados pela própria morte. Ela quer ser lembrada. Ser levada a sério. Talvez fique fascinada com os dribles e evoluções humanas, na busca incessante de protelar nosso encontro marcado e nos dê algumas chances. Deve deliciar-se com nossa onipotência e ilusão de não sermos reparados, imunes e invisíveis a ela. Eterna ela se faz atenta e sábia. E trabalhadeira. De vez em quando, nos usa para avisar que está viva. E ativa. Na Boate Kiss, de Santa Maria – RS, ela percebeu a audácia humana e mandou seu recado: levou em torno de duzentos e cinquenta jovens universitários, meninos e meninas, cheios de uma vida inteira pela frente. Sentiu-se ultrajada com tamanho deboche e irresponsabilidade: um espaço para 2000 pessoas com apenas uma porta de acesso, sem licença pra funcionar, sem pessoal treinado, sem cuidados com a vida humana, e que funcionou assim, por muitos  e muitos anos; um artista displicente e inconsequente; o poder público que não fez valer suas leis, regras e procedimentos, quem sabe quantos trambiques e acertos rolavam por fora. Em meio a todo este descaso, jovens em busca de diversão e prazer, esquecidos dos perigos do breu da noite e da morte, embriagados de vida. Se ela levasse apenas dois, cinco ou dez, talvez fossem jogados nas estatísticas diárias de humanos acostumados com a imprudência e negligência, a violência, o câncer, os acidentes e outras fatalidades da vida contemporânea. E, nada mudaria. Ela levou muitos – demais até – pra nos lembrar que ela existe e está atenta. Que estes muitos que se foram sirvam de lição para que muitos mais não tenham que ser levados de forma tão precoce e trágica. Que a caça às bruxas que certamente acontecerá nos próximos dias, semanas e meses subsequentes à tragédia de Santa Maria/RS, não acabem em fundos de gavetas, nem em vazios da memória por todo o país. Mais trágico ainda, é saber que horrores como esse já aconteceram e vão continuar acontecendo (Argentina 2004 – 194 mortos; China 2000 – 309 mortos; Russia 2009 – 109 mortos, Estados Unidos 2003 – 100 mortos;  Holanda 2001 – 14 mortos; Venezuela, Tailândia, Japão ….) enquanto não levarmos a vida, e também a morte, à sério.

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