Nas minhas madrugadas insones, flerto com meu vizinho que flerta com algo que não sou eu. Ou melhor, eu olho, ele olha. E não nos vemos. Eu no meu quarto, atrás da penumbra e da cortina diáfana, apenas o observo de relance. Ele, na sua cozinha nua e descortinada, de fluorescentes hospitalares, o olhar fixo em frente. Eu no sexto, ele no quarto andar. Reconheço que minha perspectiva e ângulo são infinitamente melhores. Ele chama minha atenção. Ele nem reparou que existo (e que o observo). Aliás, só o conheço de perfil, de longe, olhando para frente, para algo que não vejo. Se cruzar com ele pela rua, um completo desconhecido. Faça frio, faça calor, inverno ou verão, domingo ou segunda, e eu o vejo, de pé, por um longo período, encostado ou apoiado numa bancada ou mesa ou balcão, olhando. Possivelmente para a televisão. Possivelmente, preparando um lanche ou jantar. O olhar, a atenção sempre fixa, em frente. Ele me faz lembrar o falecido Seu Flor, da Grande Família, com sua regata branca. Ele pode ser qualquer um. Ainda bem que ele não me vê. Imagino que, assim como eu, alguém possa estar me olhando, me observando. E eu, totalmente alheia a esse olhar. A convivência humana tem suas esquisitices.