O transtorno de conduta caracteriza-se essencialmente pelo padrão repetitivo e persistente de comportamentos nos quais são violados os direitos básicos dos outros ou normas ou regras sociais importantes apropriadas à idade. Segundo Kaplan & Sadock o transtorno de conduta é razoavelmente comum durante a infância e adolescência. Aproximadamente, entre 6 a 16% dos meninos e 2 a 9% das meninas, com menos de 18 anos, podem apresentar o transtorno, sendo mais comum entre os meninos, na proporção de 4 para 1 (entre os meninos) e 12 para 1( entre as meninas). O transtorno de conduta é mais comum em famílias onde os pais tem personalidade anti-social e dependência de álcool, bem como parece estar significativamente relacionado a fatores econômicos. Os fatores etiológicos que parecem estar associados ao surgimento do transtorno são multifatoriais, e nenhum fator isolado é capaz de explicar o comportamento anti-social e o transtorno de conduta, sendo que uma variedade de fatores biopsicossociais contribuem para o seu desenvolvimento, como:
- Fatores parentais:Algumas atitudes dos pais e manejos falhos de educação podem influenciar o desenvolvimento de comportamentos mal-adaptativos nos filhos. A desestrutura familiar,, especialmente a tensão entre os pais, e não somente o lar desfeito, pode contribuir para o transtorno de conduta. A psicopatologia parental, abuso infantil, negligência, sociopatia, dependência de álcool e abuso de substâncias nos pais estão associados ao surgimento do transtorno de conduta nos filhos. Possivelmente muitos destes pais também tiveram privações em sua infância.
- Fatores sócio-culturais: Teorias atuais sugerem que crianças com privações socioeconômicas, na busca para atingir o status social valorizado em sua cultura, utilizam-se de meios ilegítimos para alcança-lo.
- Fatores psicológicos: Como a criação destas crianças acontece de forma precária, tornam-se rancorosas, exigentes, perturbadas e incapazes de desenvolver um grau de tolerância à frustração, tão necessária para os relacionamentos maduros.
- Fatores neurobiológicos: Existem poucos estudos, no entanto, alguns estudos sugerem que existe um funcionamento noradrenérgico diminuído no transtorno de conduta. Pesquisas mostram que freqüentemente existe uma inter-relação entre o transtorno de conduta e o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade(TDAH).
- Abuso e maus tratos na infância: Crianças expostas à violência por longos períodos tendem a comportar-se agressivamente. Muitas vezes pela dificuldade de verbalizar seus sentimentos, estas crianças se expressam por meios corporais.
- Outros fatores: O TDAH , disfunções ou lesões do SNC e extremos de temperamento precoces podem predispor uma criança ao transtorno de conduta. Estudos longitudinais do temperamento sugerem que muitos desvios comportamentais,são, inicialmente, uma resposta direta a um fraco ajuste entre, por um lado, as necessidades emocionais e o temperamento da criança, e por outro lado, as atitudes parentais e práticas de criação dos filhos.
O transtorno de conduta não se desenvolve da noite para o dia, evoluindo ao longo do tempo, até chegar a um padrão consistente de violação dos direitos alheios. A idade média de início do transtorno de conduta é menor em meninos que em meninas. Entre 10 e 12 anos, para os meninos, e entre 14 e 16 anos para as meninas. Crianças com transtorno de conduta expressam seu comportamento agressivo de várias formas, podendo ser expresso por provocações, agressão física, crueldade, hostilidade, abusos verbais, obscenidades, mentiras persistentes, gazetas e vandalismo. Nos casos mais severos, freqüentemente existe a destrutividade, furtos e violência física. Geralmente estas crianças não se preocupam em encobrir o seu comportamento anti-social. Apresentam, freqüentemente, pensamentos, gestos e atos suicidas. Muitas destas crianças não conseguem desenvolver vínculos sociais, tornando-se muitas vezes retraídas ou isoladas, ou então, envolvendo-se com pessoas mais velhas ou mais jovem, ou ter relacionamentos superficiais com outros jovens anti-sociais. A maioria tem baixa auto-estima, embora demonstrem coragem. Estas crianças não tem preocupação pelos sentimentos, desejos e bem-estar alheios, sendo muito difícil que tenham sentimentos de culpa ou remorso por seu comportamento, procurando usualmente responsabilizar alguém pelos seus atos. Freqüentemente estas crianças, tiveram frustrações de suas necessidades de dependência, como também, não absorveram questões de disciplina. A socialização deficiente mostra-se pela sua agressividade excessiva e falta de inibição sexual. Observa-se normalmente, algum grau de patologia social ou psicológica na família. Os padrões de disciplina dos pais normalmente não são ideais, podendo variar de uma excessiva rigidez até a inconsistência ou relativa ausência de supervisão e controle.
Os critérios diagnósticos para Transtorno de Conduta são:
A.Um padrão repetitivo e persistente de comportamento no qual são violados os direitos básicos dos outros ou normas ou regras sociais importantes apropriadas a idade, manifestado pela presença de três (ou mais) dos seguintes critérios nos últimos 12 meses, com, pelo menos, um critério presente nos últimos 6 meses:
Agressão a pessoas e animais
- freqüentemente provoca, ameaça, ou intimida os outros
- freqüentemente inicia lutas corporais
- utilizou uma arma capaz de causar dano físico sério a alguém (por ex.,bastão, tijolo, faca, garrafa quebrada, arma de fogo)
- foi fisicamente cruel com pessoas
- foi fisicamente cruel com animais
- roubou com confronto com a vítima (por ex., bater carteira, arrancar bolsa, extorsão, assalto a mão armada)
- forçou alguém a ter atividade sexual consigo.
Destruição de patrimônio
- Envolveu-se deliberadamente em provocação de incêndio com a intenção de causar sérios danos
- Destruiu deliberadamente o patrimônio alheio ( de outra forma que pelo ateamento de fogo)
Defraudação ou furto
(10)Arrombou a residência, prédio ou automóvel alheios
(11)mente com freqüência para obter favores ou bens ou para evitar obrigações legais (isto é, ludibria outras pessoas)
(12)roubou objetos de valor sem confronto com a vítima ( por ex., furtos em lojas, mas sem arrombar e invadir; falsificação)
Sérias violações de regras
(13)freqüentemente permanece na rua a noite, apesar de proibições dos pais, iniciando antes dos 13 anos de idade
(14)fugiu de casa à noite, pelo menos duas vezes, enquanto vivia na casa dos pais ou lar adotivo ( ou uma vez, sem retornar por extenso período)
(15)freqüentemente gazeteia a escola sem justificativa, iniciando antes dos 13 anos de idade.
- A perturbação no comportamento causa comprometimento clínico significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional.
- Se o indivíduo tem 18 anos ou mais, não são satisfeitos os critérios para o Transtorno de Personalidade Anti-Social.
Especificar tipo com base na idade de início:
Tipo com início na infância: Início de, pelo menos, um critério característico de Transtorno de Conduta, antes dos 10 anos de idade.
Tipo com início na Adolescência: ausência de quaisquer critérios característicos de Transtorno de Conduta antes dos 10 anos de idade.
Especificar gravidade:
Leve: poucos problemas de conduta, se existem, além daqueles exigidos para fazer o diagnóstico e os problemas de conduta causam apenas um dano pequeno a outros.
Moderado: número de problemas de conduta e efeito sobre outros intermediários, entre “leve” e “grave”.
Grave: muitos problemas de conduta além daqueles exigidos para fazer o diagnóstico ou problemas de conduta que causam dano considerável a outros.
Os distúrbios de conduta podem fazer parte de muitas condições psiquiátricas da infância, variando desde os transtornos de humor, transtornos psicóticos e transtornos de aprendizagem. A relação entre o transtorno de conduta e o transtorno desafiador opositivo ainda está em debate. O transtorno desafiador opositivo tem sido considerado como o precursor leve do transtorno de conduta. Muitas crianças não evoluem para o transtorno de conduta, mas mantém suas características oposicionistas. O que diferencia os dois transtornos é que no transtorno de conduta ocorre a violação dos direitos básicos dos outros, enquanto que no distúrbio desafiador opositivo, a hostilidade e o negativismo não chegam a violar seriamente os direitos alheios. É freqüente, que ocorram transtornos de humor em crianças com algum grau de irritabilidade e comportamento agressivo, e o transtorno de conduta pode ocorrer e ser diagnosticado durante o início de um transtorno de humor. Esta condição não está presente no transtorno desafiador opositivo. Em geral, crianças que são diagnosticadas com transtorno de conduta precocemente, que exibem sintomas em maior quantidade e os expressam com maior freqüência, tem os piores prognósticos. Em parte isto se deve, ao fato de se tornarem mais vulneráveis a desenvolverem outros transtornos mais tarde, como um transtorno de humor ou transtorno relacionados a substâncias Um bom prognóstico pode ser previsto quando o transtorno é leve, ausência de psicopatologia coexistente e funcionamento intelectual normal.
COMPREENSÃO DINÂMICA: A VISÃO DE D. W. WINNICOTT
Winnicott acreditava que é na época em que a capacidade de envolvimento está se desenvolvendo, entre os 6 meses e 2 anos de idade, que a privação ou perda pode ter conseqüências devastadoras: os primórdios do processo de socialização decorrentes de tendências inatas da criança podem se perder ou se obstruir. Winnicott reelabora de maneira própria, o conceito da “posição depressiva” de Melanie Klein, sendo uma das principais diferenças, a ênfase que ele dá ao ambiente humano (especialmente a mãe) na identificação e no fomento da tendência inata da criança para o envolvimento. A origem da capacidade de envolvimento apresenta um problema complexo. O envolvimento é uma característica importante na vida social, pois o envolvimento implica numa maior integração e maior crescimento, relacionando-se de forma positiva com o senso de responsabilidade do indivíduo, especialmente com respeito às relações em que se introduzem pulsões instintuais. O envolvimento refere-se ao fato de o indivíduo preocupar-se ou importar-se, e tanto sentir como aceitar responsabilidade. Geralmente se descreve a origem da capacidade de envolvimento em termos das relações mãe-bebê, quando a criança já constitui uma unidade estabelecida e sente a mãe, ou figura materna, como pessoa total. Todos os processos de maturação formam a base de desenvolvimento da criança, tanto o desenvolvimento psicológico, como o desenvolvimento anatômico e fisiológico. E para que este desenvolvimento aconteça de forma positiva, são necessárias certas condições externas para que os potenciais de maturação se concretizem. Ou seja, o desenvolvimento depende de um ambiente suficientemente bom, onde os cuidados maternos adequados, nos estágios iniciais, são fundamentais para saúde emocional da criança.
Winnicott ressalta que “existe algo que chamamos de ambiente não suficientemente bom, que distorce o desenvolvimento do bebê, assim como existe o ambiente suficientemente bom, que possibilita ao bebê alcançar, a cada etapa, as satisfações e conflitos inatos e pertinentes”(p.399,, da pediatria) Freqüentemente, diz-se que a mãe é biologicamente condicionada para a tarefa de lidar de modo todo especial com as necessidades do filho, ou seja, espera-se que a mãe identifique-se – consciente e inconscientemente – com o seu bebê. A tese de Winnicott é de que existe um estado psicológico, que ele denomina de Preocupação Materna Primária , na qual, a mãe atinge um estado de sensibilidade muito aguçada durante e principalmente o final da gravidez , e nas primeiras semanas de vida do bebê, em que elas “adoecem” de forma normal o que possibilitaria a adaptação sensível e delicada às necessidades do bebê já nos primeiros momentos. Algumas mães conseguem este estado de doença normal com um filho e não com o outro. Para o autor, as mães que desenvolvem esse estado de preocupação materna primária, fornecem um contexto para que a constituição da criança comece a se manifestar, para que as tendências ao desenvolvimento comecem a desdobrar-se, e para que o bebê comece a experimentar movimentos espontâneos e se torne dono das sensações correspondentes a esta etapa inicial da vida.
A falha materna em adaptar-se na fase mais primitiva às necessidades do bebê, conseguindo colocar-se no lugar de seu bebê, para assim corresponder às suas necessidades (inicialmente necessidades corporais, depois, psicológicas), pode ser sentida como uma ameaça à existência do eu do bebê, uma ameaça de aniquilação. Dessa forma Winnicott acredita que com um ambiente suficientemente bom, na fase mais primitiva do bebê, irá capacitá-lo para começar a existir, a ter experiências, a formar seu ego pessoal, a dominar seus instintos, podendo defrontar-se com todas as dificuldades da vida. Isto passa a ser sentido como real pelo bebê, que se torna capaz de ter um eu, que pode em algum momento, perder a espontaneidade ou até morrer. Diferentemente, quando o ambiente não é suficientemente bom, esse eu, pode dar-se ao luxo de morrer, sem nunca se desenvolver. Winnicott diz que “O sentimento de realidade encontra-se ausente, e se não houver caos em excesso o sentimento final será o de inutilidade. As dificuldades inerentes à vida não poderão ser alcançadas, e menos ainda o serão as satisfações. Quando não há caos surge um eu falso que esconde o eu verdadeiro, que se submete às exigências, que reage aos estímulos e que se livra das experiências instintivas tendo-as, mas que está apenas ganhando tempo”(p. 404, da ped)) Portanto, quando ocorre uma falha neste estágio inicial, o bebê será apanhado por mecanismos de defesa primitivos (falso eu) que pertencem à ameaça de aniquilação, e os elementos constitucionais poderão ficar anulados.
Winnicott afirma que quando o ambiente falha nos estágios iniciais de maturação, ocorre uma falha do ego em organizar defesas, ficando num extremo, o ego ocultando a formação de sintomas neuróticos ( criados contra a ansiedade que faz parte do Complexo de Édipo), e portanto, a doença oculta é uma questão de conflito inconsciente do indivíduo. No outro extremo, fica o ego ocultando a formação de sintomas psicóticos (splitting, dissociações, despersonalização, regressão, dependência onipotente, etc), estando a doença na estrutura do ego. Para ele, os estágios iniciais do desenvolvimento emocional estão repletos de conflito e desintegração.A relação com a realidade externa ainda não está concluída; a personalidade ainda não está bem integrada; o amor primitivo tem um propósito destrutivo e a criança pequena ainda não aprendeu a tolerar e enfrentar os instintos.No início da vida ela tem necessidade de viver num círculo de amor e força, para não sentir medo de seus próprios pensamentos e dos produtos de sua imaginação, a fim de avançar no seu desenvolvimento emocional. Quando isto fracassa, a criança pode desenvolver a tendência anti-social. Para que a criança supere esta falha, é preciso que ela seja capaz de sentir a realidade das coisas reais, internas e externas, para o estabelecimento e integração da personalidade. Depois dessas coisas primitivas, seguem-se os primeiros sentimentos de envolvimento e culpa, bem como os primeiros impulsos para fazer reparações.
Para Winnicott o “ego” é o somatório de experiências.
O autor utiliza a expressão tendência anti-social. Para ele “A tendência anti-social sempre se origina de uma privação e representa o pedido da criança para voltar à época anterior à privação, ao estado de coisas que conseguia quando tudo ia bem.”(p.185 matu) Dito de outro modo, que em algum período ou fase do desenvolvimento em que ocorreu uma falha real de apoio ao ego, que deteve o desenvolvimento emocional da criança. Assim o processo de maturação ficou contido por causa de uma falha no ambiente facilitador.
Winnicott introduz a idéia de caráter como algo que faz parte da integração. Para ele o caráter é uma manifestação da integração bem sucedida e um distúrbio de caráter é uma distorção da estrutura do ego, com a integração mantida.O caráter da criança se estrutura sobre a base de um processo contínuo. E na teoria dos distúrbios de caráter, pode-se pensar que o indivíduo pode ser sobrecarregado com duas cargas distintas, sendo uma delas, a carga de um processo de maturação perturbado e em certos aspectos detido ou adiado. A outra, é a esperança, uma esperança que nunca se extingue completamente, de que o meio tome conhecimento e o compense pela falha específica que acarretou o dano. Assim sendo, a tendência anti-social implica em esperança, bem como, compele o ambiente a tornar-se importante. O paciente, devido a impulsos inconscientes pode encarregar alguém a cuidar dele, tarefa esta, que muitas vezes é desempenhada pelo terapeuta, através do manejo, tolerância e compreensão.
John Bowlby, assinala a relação entre a de-privação emocional (a criança é destituída de algum aspecto essencial de sua vida em família) e a tendência anti-social, o que ocorre no período entre o final da primeira infância e a época em que a criança passa a andar, aproximadamente entre um ou dois anos. Quando acontece a tendência anti-social, aconteceu uma de-privação, ou seja, deu-se a perda de algo bom, que foi retirado. Há duas vertentes da tendência anti-social. Uma das vertentes é representada pelo roubo, e a outra é representada pela destrutividade. No roubo, a criança procura algo em algum lugar, e não encontrando, procura em outro lugar, se ela tiver esperança.Na destrutividade, ela busca a quantidade de estabilidade ambiental necessária para suportar o comportamento impulsivo.
É importante assinalar que, para Winnicott, na base da tendência anti-social existe uma experiência inicial boa que foi perdida. “Com toda certeza, um dos aspectos essenciais é o de que o bebê tenha alcançado a capacidade de perceber que a causa do desastre foi devida a uma falha do ambiente. A compreensão correta de que a causa da depressão ou da desintegração é externa, e não interna, provoca a distorção da personalidade e o impulso de buscar a cura numa nova provisão ambiental. O grau de maturidade do ego que permite uma percepção deste tipo determina o desenvolvimento de uma tendência anti-social em vez de uma doença psicótica.”(p.415, da ped)
ESTUDO DE CASO
Dados de Identificação:
Nome: LFE Escolaridade: 4ª série
Data de Nascimento: 14.05.1993
Idade: 10 a 2m
Filiação: JE(pai) Idade: 46 a Profissão: Empresário
SE (mãe) Idade: 44 a Profissão: advogada
Motivo da consulta:
LF é aluno na escola onde trabalho como psicóloga escolar. Como tem acontecido muito nos últimos anos, os pais foram chamados pela coordenação pedagógica da escola, devido a comportamentos inadequados do menino, tanto em sala de aula, como nos recreios e intervalos. LF costuma atrapalhar durante a aula, conversando e brincando,e nos intervalos é comum se envolver em confusões e brigas com os colegas. Nesta ocasião, os pais foram chamados, porque LF roubou material escolar de um colega, e destruiu uma cadeira da escola. O encaminhamento para atendimento psicológico aconteceu na própria escola, e os pais decidiram que LF, deveria iniciar atendimento psicológico o mais breve possível. A escolha da terapeuta ficou a critério da família, que optou pela mesma profissional que atua na escola, o que segundo a família, poderia contribuir e facilitar o acompanhamento de LF. Quando os pais vieram para a primeira consulta, ambos estavam bastante ansiosos com a evolução da sintomatologia do filho. Ambos relatam que, LF é um menino carinhoso, que está sempre querendo chamar a atenção, e acaba se envolvendo em situações que desagradam profundamente aos pais, pois ele mente muito, não sabe brincar, não sabe perder e trapaceia nos jogos, briga constantemente com o irmão, tem poucos amigos, roubou dinheiro dos pais, fala muito palavrão, e apresenta muitas condutas efeminadas ( segundo a mãe, são gayzices) além de comportamentos como soltar gazes e arrotos , tanto em família como quando vem visitas em casa.
Impressão Geral Transmitida:
SE e JE compareceram à entrevista de anamnese bastante ansiosos e preocupados com o comportamento de LF. Falavam o tempo todo, sobre todas as situações difíceis por que já passaram devido ao mau comportamento do filho: nos aniversários de colegas, quando vai na casa de colegas ou parentes, normalmente os pais recebem queixas pelo comportamento de LF, etc. A mãe chorava em diversos momentos, demonstrando desespero em não saber como proceder com o filho, enquanto o pai mantinha-se mais calmo e tentava encontrar explicações para todos os fatos relatados, de forma racional e menos afetiva. O casal é de classe média alta, de meia idade, ambos com aparência séria, com valores morais bem definidos e limitados, e bastante preocupados e mobilizados com o comportamento inadequado do filho.
LF veio à primeira sessão e foi “adentrando” em meu consultório, pegando os brinquedos sem pedir permissão. LF é um menino pequeno para a sua idade (é o menor de seu grupo escolar), é magro e baixo, de cabelos louros e olhos azuis. Sua expressão é pesada, pois é comum abrir olhos e boca de forma exagerada, quando se exalta ou quer mostrar algo do seu interesse. É freqüente estar agitado quando brinca ou joga, xingando e reclamando quando as coisas não saem conforme o esperado, usando palavrões e tentando trapacear durante o jogo. Mostra-se hiperativo, iniciando várias coisas ao mesmo tempo, ou, não terminando adequadamente uma tarefa para já começar outra. Na sala, costuma ficar sentado no tapete, se arrrastando para pegar as coisas ou se deitando, tanto no tapete como no sofá, várias vezes durante a sessão.
História Pregressa e Atual:
LF é o segundo filho de SE e JE. É o caçula. A gravidez de LF, apesar de não ter sido planejada foi bem aceita pelo casal. No entanto, SE relata que foi um período muito difícil para ela, devido a questões profissionais. Ela define sua gravidez como “uma gravidez muito difícil”. SE trabalhava como sócia em um escritório de advocacia, e a segunda gravidez a deixou muito dividida e indecisa sobre como conciliar a maternidade e a carreira. O parto de LF foi normal sem complicações. A mãe relata um período de depressão pós-parto, que durou cerca de 6 meses e somente quando ela conseguiu definir sua vida profissional, retirando-se da sociedade no escritório de advocacia e decidindo trabalhar como autônoma em sua própria casa, é que pôde finalmente se envolver com o bebê e a depressão aos poucos foi cedendo. A mãe pouco falou sobre este período, centrando-se mais na evolução de LF, mas segundo ela, não fez tratamento para a depressão. O desenvolvimento motor de LF foi dentro do esperado. LF foi amamentado poucas semanas, pois a mãe lembra que seu leite logo “secou”. Após alguns meses, os pais perceberam que LF apresentava um problema ocular,e LF foi diagnosticado como estrábico, e passou a usar tampão durante muito tempo, até ser submetido a uma cirurgia de correção. LF sempre “odiou” usar tampão e depois os óculos. Atualmente usa lente de contato devido a miopia, não se percebendo nada de seu antigo estrabismo. Com 3 anos, LF iniciou sua vida escolar, indo para a creche. A mãe relata que LF sempre gostou da creche, e que sempre se relacionou bem com colegas e professores. Mas sempre foi um menino que lutava para chamar a atenção para si, tanto na escola como em casa. SE relata situações de ciúme intenso entre os irmãos, a ponto de os pais terem que afastá-los senão poderiam se machucar.
O irmão de LF, PA foi diagnosticado com TDAH, e está sendo medicado já há algum tempo , e tem apresentado boas melhoras, tanto em comportamento como em seu rendimento escolar. Segundo a escola, LF sempre teve bom rendimento escolar, seu maior problema sempre foram suas atitudes e comportamentos. No entanto a partir deste ano, LF começou a decair consideravelmente em seu rendimento escolar. Os pais o levaram ao mesmo neurologista que acompanha o outro filho, e num primeiro momento este diagnosticou LF como depressivo, e passou a medicá-lo com anti-depressivo durante um período aproximado de 4 meses, sem resultados. Durante este período, LF além de piorar seu rendimento escolar, também piorou seu comportamento. Uma atitude muito preocupante de LF, foi a tentativa de cortar os pulsos, com uma faca cega, quando ele não conseguiu ganhar um objeto que ele tanto queria. LF costuma mentir para chamar a atenção, fala muitos palavrões, e por várias vezes já roubou dinheiro da carteira dos pais, bem como material escolar de seus colegas, solta gazes e arrotos em sala de aula, e em casa, na presença de visitas, o que constrange demais a família, pois parece que LF acha graça do seu comportamento. Quando é chamada sua atenção ele prontamente pede desculpas, para num momento mais tarde, repetir estes comportamentos. Na escola já falsificou a assinatura dos pais em uma prova em que ele tirou nota baixa.Junto a seu grupo escolar, passou a ser visto como um menino problema, e começou a ser comum responsabilizá-lo sempre que algo de anormal acontece em sala de aula. Esta postura do seu grupo começou a mudar, pois todos perceberam que nem sempre era culpa de LF, e com o tratamento que LF iniciou, este tornou-se um pouco mais quieto, e mesmo assim muitas confusões continuaram acontecendo em sala de aula.
No último incidente que aconteceu na escola, em que LF foi suspenso por dois dias, LF além de brigar em sala de aula, desrespeitando a professora e colegas, destruiu uma cadeira do colégio devido a intensa fúria. À tarde, quando LF foi à catequese, falou todo orgulhoso e debochando dos colegas, que ele poderia ficar em casa dormindo, durante a suspensão, enquanto os colegas teriam que ir para a escola. Outro comportamento recente, mas muito comum, foi a atitude que LF tomou no banheiro, quando mostrou seus órgãos genitais para um menino de 5 anos, da pré-escola, subindo numa cadeira, e balançando o pênis para o menino ver. Este menino saiu correndo em pânico, em busca de ajuda. Seus colegas de turma acostumados com este tipo de atitude de LF, dizem que ele “fica fazendo gayzice na banheiro” e já nem se importam mais. Após a suspensão de LF, foi combinado que a família retornaria para o médico a fim de rever a medicação e possível diagnóstico. Como terapeuta de LF, encaminhei um parecer psicológico com o diagnóstico de distúrbio de conduta. O médico não confirmou o diagnóstico. Segundo ele “A hipótese mais provável para o LF é de DDO (Distúrbio Desafiador de Oposição) talvez com alguma co-morbidade, em especial ansiedade/depressão”. A medicação foi alterada, e a combinação feita com a família foi de que se num prazo de 30 dias não houvesse melhora significativa, seria feito o encaminhamento para um psiquiatra infantil.
Há um mês ele não tem comparecido às sessões. Após um período de duas semanas em que me ausentei, a mãe buscou a avaliação de um outro profissional da área da psicologia, num instituto de Porto Alegre, a fim de confirmar o diagnóstico. Por contato telefônico, ela comunicou que assim que tivesse o resultado, ela retornaria para definir como dar continuidade ao tratamento de LF.
SE também iniciou tratamento para depressão, pois segundo ela, com os problemas de ambos os filhos, tanto ela como o marido estão exaustos, mas como ela é quem fica muito mais em contato no dia-a-dia com os dois, sentiu-se extremamente fragilizada e angustiada, iniciando tratamento farmacológico no mesmo período em que o LF alterou sua medicação. Segundo dados e relatos da escola, a família de LF sempre amenizou os problemas do filho, alegando que as professoras perseguiam o filho e que ele sempre era o “bode expiatório” da turma, e que em casa ela não tinha problemas tão sérios com o filho. Com o passar dos anos, e com o agravamento dos comportamentos de LF, a família se conscientizou da realidade dos fatos e está em busca de tratamento para LF.
Evolução do Atendimento:
O processo psicoterapêutico de LF, iniciou em 28 de novembro de 2002. Após um período de Avaliação Psicológica em que foram aplicados os testes MACHOVER, H.T.P., FAMÍLIA, BENDER, FÁBULAS DE DUSS e a HORA DE JOGO, iniciamos o atendimento com uma sessão semanal para LF e uma sessão mensal com os pais, com possibilidade de algumas sessões de família, o que até agora não aconteceu. Pode-se perceber através dos testes a presença de intensa agressividade e impulsividade, ciúmes do irmão, sentimentos de inadequação e baixa auto-estima, pouco reconhecimento da autoridade paterna e materna, bem como grande confusão e pouca confiança no mundo que o cerca, dificuldade nos contatos afetivos, imaturidade e dependência. Em entrevista com os pais , foram feitas algumas combinações de manejo como a questão do respeito pela figura de autoridade do pai e da mãe, questões relativas a equiparação de mesadas (eram de valores diferentes, apesar da pouca diferença de idade dos irmãos, o que gerava grande disputa e muitas brigas e discussões),a reparação e reposição de objetos, sempre que LF destruía ou roubava, além de atitudes mais carinhosas e afetivas para dar a LF a certeza do amor dos pais, tão disputado com o irmão PA, entre outras questões. Os pais mostraram-se muito interessados, e colocaram em prática prontamente todas as combinações, que sempre foram bem discutidas em terapia.
Durante o período de festas de final de ano e férias escolares, ou seja, de dezembro a março, houveram muitas faltas e a terapia foi acontecendo de forma lenta, porém gradual. Nas primeiras sessões, e na grande maioria delas, LF sempre quis jogar o “Jogo da Vida”. No início, deixei-o jogar a seu modo, e pude perceber a sua dificuldade em perder, quando revirava o dinheiro para que não se pudesse saber quem era o vencedor; sua baixa tolerância à frustração pois ficava muito irritado, falando palavrões ou tentando trapacear para amenizar a perda. Depois de algumas sessões, passei a assinalar e a cobrar que ele jogasse de forma correta, e o jogo começou a perder a graça, em parte porque era um jogo de “gato e rato”, onde a terapeuta ficava atenta para as infrações e o paciente tentava driblar esta atenção para ganhar da terapeuta. As interpretações e associações do jogo com a vida real, parece que tiveram pouco impacto, pois o que mais mobilizava LF era o jogo, era a possibilidade de ganhar, de trapacear , de estar atento a tudo, para ser o grande vitorioso no final. Esta situação cansou aos dois. LF passou a desenhar na lousa. Vários desenhos em questão de minutos. LF desenhava e mal terminava, apagava e começava outro, de forma ansiosa e bastante desestruturada. Seus desenhos passaram a mostrar seu mundo interno, confuso e desestruturado, e questões como a agressão, o matar e o morrer, começaram a vir a tona. Numa das últimas sessões em que LF compareceu sozinho, pedi que ele desenhasse no papel ofício para que pudéssemos guardar suas produções em sua pasta. Inicialmente ele relutou, mas depois acabou desenhando uma situação em que ele mostrava sua realidade interna: dizendo “eu sou mau, há,há,há” desenhou a casa do telhado maluco, um campo minado de minas terrestres, e a frase “Sadam Husem foi morto”. Esta foi sua última sessão.E este foi um dos desenhos que LF mostrou para a mãe, muito orgulhoso.
DISCUSSÃO
Winnicott desenvolve uma teoria bastante complexa sobre a preocupação materna primária – a de-privação- os distúrbios de caráter – a tendência anti-social – a esperança. Em alguns momentos, fica-se com a impressão de que ele identifica a causa ou origem da tendência anti-social, nas primeiras semanas de vida do bebê, para num outro momento, situá-la no período, que Melanie Klein denomina de Posição Depressiva, ou seja, após os 6 meses. Ele situa a idade entre 6 meses a 2 anos. O termo tendência anti-social, utilizado por ele, e definido por ele, não como um diagnóstico, como seria o diagnóstico de uma neurose ou psicose, é o termo que se equipara àquilo que chamamos de conduta anti-social ou transtorno de conduta. Pelo menos foi assim que foi entendido, compreendido e analisado.
Quando se faz a relação entre os dados do DSM-IV, a teoria de Winnicott e o estudo de caso apresentado, várias são as questões e interrogações. Qual será o diagnóstico mais provável para LF? Transtorno de Conduta ou Transtorno Desafiador Opositivo, sugerido pelo neurologista? Onde podemos situar a de-privação que desencadeou toda a tendência anti-social de LF? De que forma a constituição desta família contribuiu para a evolução do quadro? A depressão pós-parto da mãe foi significativa para o desenvolvimento emocional de LF?
Vários são os questionamentos, quando nos deparamos com o comportamento de LF. Mas, levando-se em consideração todos os aspectos teóricos, os dados da história pregressa, e a evolução do atendimento de LF, parece que o Transtorno de Conduta é o que melhor define o quadro. Apesar da idade de LF, em todo o seu desenvolvimento parece haver uma evolução na sintomatologia, que é o que relatam os autores, quando dizem que o transtorno de conduta não surge da noite para o dia. As atitudes de roubar, mentir, destruir material escolar, mostrar os órgãos genitais para os colegas e para um menor, a tentativa de se matar cortando os pulsos com uma faca, os poucos amigos, a dificuldade de relacionar-se socialmente, a dificuldade de se responsabilizar e de sentir culpa e remorso com os constantes pedidos de desculpas, para em seguida repetir as mesmas atitudes, falsificar a assinatura dos pais, etc., quando analisados na proporção e intensidade para a sua idade, sinalizam para a evolução de um transtorno de conduta.
Possivelmente, pode-se pensar num diagnóstico de Transtorno de Conduta, do tipo com início na infância, de gravidade moderada, com prognóstico reservado, em função da idade de início e quantidade de sintomatologia associada.
Outra questão importante, que não foi analisada teoricamente, é sobre qual estrutura de personalidade estamos trabalhando. Paulina F. Kernberg e colaboradores, assinalam sobre a questão da constituição da personalidade. Enfatizam que muitos clínicos relutam em fazer o diagnóstico de transtorno de personalidade para crianças e adolescentes, pois acreditam que a personalidade ainda não se cristalizou nesta idade. Mesmo assim – e até se pensarmos sobre o diagnóstico de transtorno de conduta que parece estar adequado ao paciente – o que parece ser importante, é que, pensando na possibilidade de se cristalizar uma determinada personalidade desviante, e pensando no que poderia ser feito terapeuticamente, acredito que fazer um diagnóstico, apenas auxilia de forma significativa, a escolha de tratamentos e encaminhamentos mais adequados ao caso. Se o diagnóstico for realmente 100% confiável, possivelmente só com a idade e o desenvolvimento emocional do jovem é que saberemos.
Pode-se pensar em uma estrutura borderline, talvez até psicótica. Mas, se pensarmos em termos de Transtornos de Personalidade, e LF satisfaz muitos dos traços característicos dos transtornos de personalidade, podemos ficar atentos a um possível Transtorno de Personalidade Anti-Social. Quando pensamos no desenvolvimento emocional de LF, suas primeiras relações afetivas, sobrevém a depressão pós-parto da mãe de LF, e aquilo que Winnicott denomina de ambiente suficientemente bom, e preocupação materna primária. Pode-se pensar que, a falta de uma ambiente suficientemente ligado (ou bom), consciente e inconscientemente, entre mãe e filho, não aconteceu em sua plenitude. A mãe relata intenso conflito para conciliar questões profissionais e maternais durante toda gravidez e nos primeiros meses de vida de LF. Na teoria de Winnicott, é durante este período, que se estrutura o desenvolvimento emocional saudável – seria a estrutura de personalidade? – da criança. É neste período que a criança precisa ter criado um “bom ambiente interno”, a partir de um bom ambiente externo, pois, como a personalidade ainda não está bem integrada, o amor primitivo pode ser destrutivo e a criança ainda não aprendeu a tolerar e a enfrentar seus instintos.
Winnicott afirma, que no começo da vida, a criança tem necessidade absoluta de viver num círculo de amor e força, para não sentir medo excessivo de seus próprios pensamentos e dos produtos de sua imaginação (medo de aniquilação), para poder prosseguir em seu desenvolvimento emocional. A família de LF parece não ser uma família negligente, muito pelo contrário, ambos os pais, mostram uma grande preocupação e dedicação para com os dois filhos. Ambos mostram-se bastante severos e rígidos para com os filhos.
Na história escolar de LF, parece que houve um período em que a mãe negava os comportamentos inadequados do filho, dizendo tratar-se de perseguição das professoras, numa tentativa talvez inconsciente de compensar “alguma coisa”. Somente quando o quadro ficou totalmente fora de controle, é que a mãe e o pai, concordaram que o problema era com o filho e não da escola. Winnicott entende a atuação (acting out) como a forma que a criança encontra, num momento de esperança, de forçar o ambiente a efetuar a cura, o que acontece quando o ambiente exerce forte reação de controle, o que permite à criança sentir-se segura, contida.
Parece que é isto que LF busca. Mas, não é apenas a contenção e a provisão ambiental, mas toda e qualquer forma de proteção e afeto. Percebe-se em LF uma necessidade quase que instintiva de confirmar o amor, aquilo que Winnicott chama de sofreguidão. Ele busca este ambiente suficientemente bom em sua família, na escola, na sociedade, na terapia.