Todo mês repito o mesmo trajeto de Florianópolis/SC à Lajeado-Colinas/RS. São 6h30min de viagem pra ir, outras 6h30min para voltar. Se tudo der certo. Se não houverem maiores engarrafamentos, acidentes, necessidades ou imprevistos. São 600 Km entre a minha casa e a casa da minha mãe, mais 25 km para a casa que é mais minha casa. Conheço o trajeto quase de cor. Saindo de Floripa vem São José, Palhoça, Garopaba, Imbituba, Laguna, Tubarão, Criciúma, Araranguá, Sombrio, Torres … a metade do caminho; Os limites de velocidade; Os pardais; Onde se posicionam os policiais rodoviários para flagrar os motoristas mais apressadinhos; Onde ficam os melhores postos de combustíveis; Os melhores banheiros; O melhor café; Onde ficam as curvas mais perigosas; Onde a estrada está pior e exige mais atenção … O trecho gaúcho é pura nostalgia. Mais 300Km observando a paisagem, as placas dos outros carros (pra saber de onde vem ou quão longe de casa estão), relembrando verões, passeios, almoços de outras épocas e ocasiões … a possibilidade de ir por outro caminho – a Rota do Sol – passando por São Francisco de Paula, Canela, Gramado, Nova Petrópolis, Garibaldi. Estrada de pista simples cheia de curvas, belas vistas e maiores perigos. A escolha, habitualmente, é a Free Way. E assim, faço o trajeto em pista dupla de Floripa à Lajeado, num traçado seguro, rápido e bonito.
Adoro viajar e dirigir. Sozinha. Quase uma forma de meditação. Durante a viagem, converso comigo mesma, gesticulo, organizo ideias e pensamentos. Tomo decisões ao som de CDs antigos e muita porcaria (balas e salgadinhos) pra comer. Embarco no carro numa ponta e só saio quando chegar na outra ponta. Paradas cortam minha determinação e foco. Na medida do possível, paro apenas, quando for absolutamente necessário.
Nestes 600 km, existem lugares que sempre me encantam. Alguns trechos com vista para o mar, criações de ostras, a ponte Anita Garibaldi, em Laguna. A região dos bananais, as figueiras no entorno da Lagoa Itapeva, entre Torres e Terra de Areia.
O Parque eólico de Osório. A Lagoa dos Quadros seguida pela Lagoa dos Barros, com suas lendas, assombrações e um dos mais belos pores-do-sol do mundo. A Arena do Grêmio, os arrozais, e o traçado decorado de uma vida inteira da BR 386 até chegar em Estrela, cruzar a ponte sobre o Rio Taquari, avistar Lajeado, pegar a faixa da direita na entrada do Parque do Imigrante, e enfim, acionar o portão e adentrar na antiga e esvaziada garagem de casa.
Quando chego, chego estranha. A casa está vazia. Nada nem ninguém vem me receber. Apenas o alarme piscante e cadenciado, o buganville e os gerânios sempre floridos. A piscina espia em tons azulados ou esverdeados, quando não terrosos. Os buxos arredondados, os palmitos e palmeiras espevitados parecem esculturas congeladas no tempo de toda uma vida. Desde que me lembro, estão lá, ladeados pelas fênix, cicas e kaizucas. A atração da última temporada, foi a jabuticabeira que pela primeira vez, em mais de 20 anos, “arrombou”, como dizem os manezinhos de Floripa. Carregou com suculentas e saborosas jabuticabas. Ao lado, a pokan e os quatro cachos de banana, sinalizam a eterna fartura do pequeno pomar. Mal estaciono o carro e todo este universo me invade e preenche. Saio do carro apenas com a bolsa, o computador, o celular, algum livro. O resto fica aguardando sossegadamente no carro … quando chegar a horra, descarrego tudo. Mas, só quando chegar a hora.
Porque chego aos poucos. Alguns pedaços meus ainda estão viajando. Largo a sacola de comida na cozinha. Abro uma caixa de leite ou uma garrafa de vinho. Jogo amendoins torrados no pote improvisado, descasco laranjas, bananas ou maçãs. Preparo uma bandeja de boas vindas. Subo ao quarto. Ligo antigos abajures, arrumo a cama, cubro com o edredon de pelúcia, afofo os travesseiros e me ponho a ler. Nada de banho, nem dentes escovados. Me satisfaço com o toque do velho pijama antigo e maltrapilho. Me aconchego ao som da brisa suave e do ronronar dos carros ao longe. Chego cansada da viagem, da vida, da rotina, de ser quem preciso e optei ser. Chego cansada de mim mesma. Preciso de uma longa noite de sono e sonhos e de uma manhã interminável e descompromissada.
É assim que chego na manhã seguinte à minha chegada. Acordo outra. Passo o café, sento no sofá, observo e espio o que acontece. Me acalmo. É quando meu corpo encontra minha alma adormecida. Com o movimento da manhã ou da tarde, retiro a agenda da bolsa, as roupas da mala. Abro as janelas, afasto as cortinas, espio o horizonte e os vizinhos, identifico sons. Ligo para alguns amigos. Saio de casa, me embrenho no jardim, piso na grama, vou ver as plantas no canil, recolho as bromélias floridas. Caminho ao redor da casa. Verifico a caixa de correspondência. Enfim, estou em casa. Inteira e verdadeira.