Gatinhos no porão

A casa dos meus avós era gigantesca. Um verdadeiro castelo quadrado, com pé direito alto, cheio de portas e janelas. Lá dentro, funcionava uma venda que vendia desde tecidos: chitas, cambraias, tergal e anarrugas até bonecas, chupetas, bibelôs, feijão, balas. Céus, o que era o baleiro daquela venda!!!!! Três andares com cinco gomos cada, cheinhos de caramelos e pirulitos. O telefone antigo – que acabei de restaurar – era ligado por fios a uma Central. Eu conhecia todas as centristas, que por acaso, eram mães das minhas amigas. Eram elas que completavam as ligações telefônicas e foram – sem querer ou querendo, vai saber? – cúmplices de muitas fofocas e namoros escondidos. Eu que o diga. De um lado da venda funcionavam os secos e molhados e a bodega: banha de porco vendida em lata, cebolas e batatas e o “schluc” do “happy hour” de cachaça de alambique. Do outro lado, paredes cheias de cortes e tecidos, gavetas abarrotadas de rendas, calcinhas e calçolas, linhas, gravatas e camisolas, botões e caminhões de madeira; prateleiras de louças, potes plásticos, brinquedos e tudo que se pode imaginar que exista numa venda nos arrabaldes do interior do interior do Rio Grande do Sul. Aquela venda era o paraíso para uma menina de mãos leves e mente curiosa. Nos fundos, separada por um imenso balcão, funcionava a casa propriamente dita. Com direito a avós, bisavô, tia-avó, os pais e um irmão metido a caçador de tico-ticos. Eu e mais 25 gatos. Os móveis eram antigos e gastos. A decoração, deprimente. Os lustres eram singelos topes – ou laços, como preferem alguns – de papel crepom enroscado no benjamim da lâmpada. Sem contar a banheira de louça encardida e pés de leão. Um luxo. E, além do fogão à gás Venax, o mais moderno que existia naquela casa eram os móveis em fórmica – um balcão, mesa e seis cadeiras – e o sofá de courino vermelho. Depois chegaram a TV Telefunken, a Monark da Caloi …

Saindo pela porta dos fundos o que eu via eram os Jardins de Versailles. Um labirinto de cercas vivas, jardins de dálias e rosas, cravos e crisântemos, um gramado infestado de rosetas e tiriricas, dois balanços, uma gangorra e uma cama elástica feita com tiras de câmaras de pneu de caminhão, que meu pai, orgulhosamente, nos presenteou. Árvores de todos os tamanhos circundavam as laterais da casa, além da estrebaria, o galinheiro e os chiqueiros. A horta. O pomar. A plantação de milho. O matinho. O Rio Taquari. Este era o meu reino, com direito a brincar de casinha, venda, elástico, sapata, bola, carrinho de lomba, Cinderela, Jane e Tarzan, roubar amendoins torrados e testar todas as chupetas da venda, sem contar a apropriação de um dos porões daquele casarão com ares de Versailles.

Infelizmente, meu reino infantil encolheu depois que saí de casa. Virou miniatura depois que conheci o legítimo Palácio de Versailles. E hoje, cabe inteirinho dentro das minhas lembranças. E é dentro destas lembranças que tento resgatar aqueles porões.

Eram dois. Dois enormes porões escuros e úmidos, divididos por uma cisterna. De um lado, o porão de móveis e roupas em desuso. Um baú preto imenso, com roupas do período imperial corvense. Cristaleiras com fundos espelhados, copos de licor cor de rosa, xícaras de porcelana quebradas, pratos e travessas da bisavó Elisa. Penteadeiras com gavetas recheadas de dentaduras e armações de óculos quebrados de todos os moradores. Os vivos e os mortos. Prateleiras com ânforas, pratos, pinicos, dosadores e pesos. Tapetes puídos e geringonças, tantas quanto impossíveis de lembrar.

Do outro lado, na fachada dos fundos, o porão dos entulhos. Minha apropriação.

Visto de frente, o casarão parecia ter um único andar,. Visto dos fundos, o casarão exibia um imenso vão e paredes marrons intercaladas por pequenas janelas basculantes de vidros canelados e sujos. No vão maior, funcionava a lavanderia da casa, ostentando uma tábua desequilibrada e um martelo de madeira para bater roupa, sabão caseiro feito de sebo de boi, um tanque de cimento, baldes de lata e bacias de alumínio, além de uma bomba de água que passou a vida gorgolejando. Nem a Consul, nem a Brastemp e muito menos o OMO e a Sanremo andaram por lá naqueles tempos. Esta esdrúxula lavanderia era a antessala de um enorme porão – o meu porão – que se espraiava por metade do subsolo da casa, onde eram guardados restos de tudo: de lenha e madeira para queimar no fogão à lenha, vassouras de piaçava desgastadas, cadeiras e balanços quebrados, guarda-chuvas estragados, vasos de barro abandonados; tijolos, telhas, sacos de batata e farinha empilhados, engradados de madeira, garrafas e garrafões de vinho vazios, carrinhos de mão, enxadas e pás. Bem ao fundo, uma nesga multicolorida refletia as paredes úmidas da cisterna sinalizando a água que escorria pelo chão batido e desembocava no rebaixo de pedras de areia, onde descansavam sapos grandes de dorso pitipoá. Meus indesejáveis e eternos hóspedes.

 O silêncio úmido só era quebrado, de tempos em tempos, pelo miado fraco das diversas ninhadas de gato que nasciam sem cerimônia e atenção. Veterinário era médico de boi e vaca, e de porco pra castrar. Aos gatos, os ratos. E as ninhadas. De alguma maneira, sempre soube que a tarefa de manter a população de gatos sob controle era do meu avô Eugênio. Era dele também a tarefa de lavar chiqueiros e estrebarias vazias e montar minhas casinhas de boneca arejadas no verão e preparar a parte ao lado da lavanderia do porão dos gatos, para a casinha de inverno das bonecas.

Assim, tanto meu avô quanto eu, ouvíamos os primeiros miados dos recém-nascidos, encalacrados no mais fundo breu daquele porão. Meu avô se fazia de surdo. Eu também. Ele ia tratar as galinhas, capinar a horta e tirar leite das vacas, enquanto eu colocava as bonecas pra dormir, lavava as panelinhas cheias de lama, folhas e sementes de árvores e arbustos e varria o chão batido da casinha caprichada com teias de aranha, tijolos aparentes e a trilha sonora mais fofa que se poderia querer. Quando meu avô sumia de vista, eu escalava os entulhos do porão em busca da gata e sua ninhada e os colocava mais fundo, mais longe e mais seguros do alcance das mãos do meu avô. Sempre com os olhos e o pavor atentos aos sapos pretos de bolinhas brancas que rondavam a área e à chegada inesperada do vô Eugênio. Sabia que era ele quem acabava com os gatinhos. Só não sabia como. Ouvia cochichos pela casa e olhares dissimulados sobre dar um fim nos gatos, que chegaram a vinte e cinco numa época em que fui muito eficiente. Vinte e cinco gatos criados soltos, xucros e selvagens. Meus amiguinhos. Mias, Minos, Minas e Mingos faziam parte das minhas brincadeiras. Vivia aranhada e feliz feito Dian Fossey, a zoóloga americana que morreu defendendo os gorilas em Ruanda, na África. Diferentemente dela, sobrevivi. De todos os jeitos.

Um dia vi como meu avô dava sumiço nas ninhadas. Fiquei horrorizada. O saco de linhagem de milho estava cheio de filhotes com poucas horas de vida, rosados, sem pelos e de olhos fechados. Eram pequeníssimos fetos felinos. Quando o vi sacar filhote por filhote e atirá-los sem dó nas pedras de areia nos fundos do casarão, próximo à estrebaria, gritei e corri desesperada e quase derrubei meu avô na tentativa de poupar alguns filhotes. Ele me afastou com rispidez, tirou o cinto, me ameaçou e gritou. Que eu me afastasse, ou então, ele teria de fazer algo muito pior que matar gatinhos. Apavorada, corri e chorei no colo da minha avó. Ela explicou que não havia comida nem ratos suficientes para todos aqueles gatos que eu insistia em salvar. E sobre o pior que meu avô poderia fazer comigo era dar-me uma bela surra. Coisa que ele jamais fez.

Meu avô e eu continuamos nos fazendo de surdos e desentendidos.

O veterinário foi chamado mais vezes para castrar gatos e gatas – pelo menos aqueles que ele conseguia pegar, pois a maioria crescia xucra e selvagem – muitos gatos morreram envenenados, eu cresci, meu avô envelheceu, e ambos, deixamos a natureza seguir seu curso.

Minha paixão pelos gatos continua. Meu asco pelos sapos também. A saudade do meu avô é eterna.

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