Quando Érica ouviu o toctoc e o passo arrastado e cadenciado no andar de baixo do sobrado onde ela e a mãe viviam, não teve dúvidas. Era seu avô dando uma passadinha para ver como elas estavam. Toda semana era a mesma coisa. Os dias e as horas variavam, mas a visita era sagrada. O pai de sua mãe era também um pai para Érica. Estava sempre atento à limpeza da casa, às provisões da geladeira e despensa, aos horários da escola de Érica e da academia, onde Isabel, sua mãe trabalhava, quem frequentava a casa, se as contas estavam pagas … Seu avô Eugênio era mais do que um pai-avô. Era um general na vida da filha. E por extensão, da própria neta.
Como dizia Isabel na eminência da visita paterna: “Lá vem seu avô de novo, fiscalizar a moral e os bons costumes desta filha destrambelhada e desmiolada.” Érica conhecia o sermão do avô e o discurso da mãe. Conhecia as broncas, as desculpas e os lamentos dos dois. Ora Érica era a confidente da mãe. Ora a espiã do avô. Duas posições opostas, que, se bem dosadas, patrocinavam passeios extravagantes com o avô e incontáveis caprichos cedidos pela mãe. Tanto Eugenio quanto Isabel percebiam o jogo duplo de Érica, usada então, como menina de recados.
O alerta foi acionado quando Érica foi flagrada beijando um menino de treze anos. Dois a mais que ela. A escola comunicou ao avô, responsável pelo pagamento das mensalidades escolares. “A fruta nunca cai longe do pé” pensou Eugênio. Ao saber do acontecido, Isabel avançou sobre o pai feito uma hiena. E sim, ela concordava: Érica tinha muito de Isabel e também, muito de Eugênio. Ou ele havia esquecido os tantos casos amorosos que mataram sua mãe? Não, ela não havia esquecido os vexames corriqueiros na casa do pai moralista e da mãe submissa. Ele que não viesse com sermões pra cima dela. Estava há anos luz de tolerar um único comentário sobre o beijo de Érica. Uma experiência saudável da descoberta da própria sexualidade com um coleguinha de classe. “Um colega repetente, maconheiro, filho de pais desgarrados, um perdido no mundo” cutucou Eugênio. Que falasse diretamente com a neta, sentenciou Isabel. A Eugênio, ofendido e fulminado pelas palavras duras, restou chamar a neta para uma conversa de gente grande.
O convite soou como tantos outros. Mesmo que o avô viesse com algum sermão sobre a infâmia daquele beijo – Céus, era apenas um beijo – ela conhecia o roteiro de cor. Na pior das hipóteses faria como sua mãe, o olhar de peixe morto de tédio. “Érica, minha filha, Deus nos deu dois ouvidos. Um pra deixar entrar, outro pra deixar sair. Tem coisa que tem de deixar sair e se perder no vento. Não vale à pena se estressar com bobagens.” E assim foi.
Eugênio pediu uma taça de vinho tinto para destravar a conversa. Érica pediu suco de lima. Insosso.
- Você não prefere uma Coca Cola?
- Não é saudável vovô.
- Quer alguma coisa pra comer? Uma “Orelha de Macaco” ou um “Nariz Entupido” que você tanto gosta?
- Não. Só suco.
- Me chamaram na escola.
- E daí?
- Falaram do beijo.
- Algum problema vovô?
Eugênio a observou e não acreditou na petulância da neta. Como assim “Algum problema? Vovô.” Essa criançada está perdida. Sequer sabem secar atrás das orelhas e pensam que já sabem das coisas. O que mais ele poderia fazer ou dizer que já não tivesse feito ou dito para a própria filha? Não lhe vinham nem novas palavras, nem novos sermões. Muito menos, novas atitudes. Um súbito cansaço se abateu sobre ele no instante em que percebeu mais uma batalha perdida. Tudo era tão antigo e antiquado quanto ele. E ele sabia onde aquela conversa ia dar. Bastava olhar para a cara de Érica, certamente discípula de Isabel. “A fruta nunca cai longe do pé”.
Embalado pelo vinho e chateado com a situação, Eugênio preferiu admirar a neta e ser complacente com seu descaso e com aquele olhar.
- Érica, querida. Seja cuidadosa. Não cometa os mesmos erros de sua mãe.
- Quer experimentar o suco de lima, vovô?