Difícil acreditar que larguei tudo pra vir morar aqui nesta praia idiota metida a besta. Idiota fui eu. Como não percebi que este plano não ia dar certo? Logo eu, que sempre adorei as livrarias, as cafeterias, os parques e os agitos com as meninas. Tá certo, tudo andava lotado demais. Gente demais. Ignorância demais. Tudo tava demais, demais, demais .. Era cobrança demais. Marlene tinha razão quando me alertou sobre a meia idade, crise dos quarenta ou dos cinquenta, sei lá, qualquer crise … Devia ter ouvido a Marlene. Ela sempre quis meu bem. Era “fair”. Tenho de ligar pra ela, responder os whatts, dar sinal de vida. Ela deve estar preocupada comigo. Também estou. … Agora cá estou eu, neste deserto encharcado de água. Sozinho e entediado. Vinte e quatro horas por dia da mais famigerada solidão. Se não fosse este barulho de mar, diria que vivo no maior silêncio. Putz, como eu sonhava viver longe do ruído dos carros, buzinas, telefones, gente falando. Falando. Fofocando … O povo adorava um barraco. Eram metidos. Divertidos, às vezes. Sinto falta de alguns. Eram gente boa … Agora cá estou eu. Vinte e quatro horas de rugido de mar, grasnar de quero-queros, corujas e, sei lá o nome destes pássaros que vivem cagando na sacada de casa. Se pegar um deles, eu estrangulo. Juro. Acabo com a raça dos cretinos … Eu só queria um tempo. Estava a ponto de explodir. Devo ter explodido e nem percebi. Sim, eu explodi. Imagina eu, logo eu, o maior defensor dos animais, querer estrangular um pobre passarinho! Não, isto não tem nada a ver comigo. Eu não sou assim … Estou assim. E vou ficar assim, sei lá por quanto tempo. Precisava me afastar de tudo e todos. Mas pedir demissão? É. Eu fui um idiota. Mas fiz. Tá feito. Agora é seguir em frente … E se eu ligasse e me retratasse? Será que meu chefe me recontrataria? Acho que não. Peguei pesado demais. Disse coisas que não devia. Mandei ele e todos aqueles puxa-sacos traíras praquele lugar. Eu tava esgotado … Devia ter pedido férias. Uns diazinhos teriam ajudado. Agora não dá mais. O negócio é seguir em frente. Fazer novos amigos. Achar um novo emprego. Qualquer coisa eu volto pra Porto Alegre. Tenho gente conhecida que gosta de mim de verdade. Eles vão me ajudar. Acho. Mas, primeiro preciso tentar dar certo aqui. Preciso de contatos. Quem poderia me ajudar? Será que a Marlene conhece alguém por aqui que pudesse me indicar? Não custa tentar. Fiquei de ver aquele gato abandonado. Lúcifer. Taí um grande nome pro bichano. Eu sempre quis ter um. Viviane, com aquela mania de limpeza, nunca deixou que eu levasse bichos pra casa. Lúcifer vai acabar com os passarinhos que fazem cocô na sacada. Ah, vai sim. Vou indo.