Medo da morte

Duas vezes por semana, Francisco e Eugênio encontram-se na Praça XV de Novembro, mais conhecida como Praça da Figueira, no centro, quase em frente à Catedral Metropolitana de Florianópolis, na altura do número 55 da Rua Padre Miguelinho, quase na esquina da Rua Procurador Abelardo Gomes. É lá, que há mais de vinte anos, os dois aposentados se encontram para jogar dominó nas mesinhas de concreto cimentadas, com tabuleiro pintado, disputadas aos berros pela turma dos cabelos brancos do centro da capital açoriana.

  • Toda vez é a mesma coisa. Dá vontade de garrar estes novatos que não conhecem as regras da mesa.
  • Eugênio, se amaina. Vamos começar logo este jogo, que o tempo xispa rápido demais.
  • A gente tá ficando velho e
  • Velho não. Usado e sabido.
  • Olha estes istepori ao nosso redor. Tudo jogado nos bancos, de olho nos tanso pra roubar celular ou bolsa.
  • Deixa eles se entenderem. Vamo jogar.
  • Você não fica renoso?
  • Com o que?
  • Com tudo que tá acontecendo.
  • A gente ajuda não atrapalhando.
  • Tais um velho. Não entende de nadica de nada.
  • Tu também.
  • Não gosto destas peças
  • Cê sempre encontra uma desculpa.
  • Cê tá me intisicando. Não tá abarrotado de abacaxis como eu.
  • Tais muito imunado. Encasqueta com tudo, isso sim.
  • Ando meio desinfeliz Desde que a Lurdinha partiu, não vejo mais graça em nada. Quer saber? Vamo parar com este jogo. Vou carcár pelo centro. Tchau.
  • Tais tolo? Fica atochando a gente.
  • Vou caminhar por aí.
  • Vá-se então.

E lá se vai Eugenio caminhar pelo centro de Florianópolis. Desde que sua Lurdinha morreu, Eugenio não é mais o mesmo. Anda tristonho e acabrunhado. Andar pelas ruas estreitas de paralelepípedo em meio ao casario, lojas e feirinhas, no centro de Florianópolis, tem sido a melhor alternativa para passar as tardes cinzentas e invernosas. As partidas de dominó entre velhos amigos aposentados passaram a irritá-lo. O status de viúvo também. Foi quando o centro começou a revelar sorrisos e sotaques para os quais Eugênio nunca teve olhos nem ouvidos. Flertar com as vendedoras e turistas argentinas, bater papo nas cafeterias e grasnar com os vendedores ambulantes, tem sido um santo remédio para a doença crônica que se abateu sobre Eugênio: o medo da morte. E o fim dos tempos, como gosta de falar Eugênio, funcionário público aposentado que passou a vida carimbando datas, distribuindo senhas, mostrando entradas e saídas nas mais diferentes repartições públicas em que trabalhou. De repente, a companhia dos velhos amigos era a única ligação com tudo que envelheceu e morreu: o trabalho e o casamento. Bastava a Eugênio, quem sabe uma nova companheira, quem sabe novos amigos.

Só não sabia como dizer isso aos velhos amigos.

E isso o irritava demais.

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