Conheço Janaína há alguns anos. Da época em que íamos juntas, uma vez por mês, de ônibus, de Blumenau a Curitiba. Enquanto ela ia para a residência no Hospital Universitário da UFP, eu ia visitar minha avó, internada num asilo para pessoas idosas.
Desde a primeira vez que sentamos juntas, a história de Janaína, mexeu muito comigo. Uma mulata 6:30h, com cabelo afro, desabou a meu lado, na minha primeira ida à Curitiba. Estava indo ver minha avó, escorraçada de casa por meu pai, sem que eu conseguisse fazer nada pra evitar esta desgraça familiar. Ai de mim se me opusesse à decisão dele com relação à mãe de minha falecida mãe. Com muito custo, economizei o dinheiro da passagem + a noite num hostel, para dar apoio à minha avó, inconformada com a morte da filha, a ingratidão do genro e a fragilidade da neta. Fazia então, o que achava ser o meu melhor.
Mal Janaína sentou a meu lado, começou a falar sobre sua formação em terapia ocupacional, a especialização para atender crianças autistas e o quanto amava o que fazia.
- E você, faz o que?
- Sou professora. Dou aula pra primeira série numa escola municipal de Blumenau.
- Você gosta do que faz?
- Gosto.
Janaína me metralhou com tantos o que, quando, porque, onde, quantos, que fiquei zonza em menos de 15 minutos.
- Tô te cansando né?
- Mais ou menos. Me fala um pouco de você.
Reparei uma dor avassaladora dominando seu semblante. As mãos retorcendo. O corpo contraindo.
– Você está bem?
- Estou triste.
- Posso ajudar?
- Meu pai faleceu no fim de semana passado.
- O que aconteceu?
E Janaína falou. Falou sobre o pai que morava num ferro velho, na periferia de Curitiba. Um presidiário em liberdade condicional, condenado a trinta e cinco anos de cadeia. Não, ela não sabia porque o pai estava preso. O assunto era um tabu. Ninguém falava nada sobre o assunto. Nem a avó de Janaína, nem a mãe. Nem mesmo o pai. Com sua morte, ou melhor, com as quatorze facadas que lhe tiraram a vida, este segredo teria de ser revelado. Afinal, os parentes de Josué, seu pai, poderiam estar correndo risco de vida, visto a violência com que ele foi assassinado, dizimado, eliminado. Sua mãe, Ivone, estava em choque. Não acreditava no destino cruel do grande amor de sua vida. Apesar de separados, Janaína tinha certeza do amor shakesperiano dos pais.
- Minha mãe é branca. Meu pai era negro. Imagina o que foi o amor dos dois!
- Um Romeu e Julieta inter-racial. Eles estavam separados desde quando?
- Eu tinha sete anos quando meu pai foi preso. Era muito menina ainda.
- Sua mãe casou de novo?
- Não. Minha mãe juntou eu e minha irmã e se mudou pra casa de minha avó. Foi ela e meu tio que nos ajudaram durante todos estes anos.
- Sua avó ainda vive?
- Vive sim. Minha mãe ainda mora com ela e minha irmã.
- E você saiu de casa?
- Saí. Eu não queria repetir a história de pobreza e discriminação da minha família. Sei o que é depender do dinheiro e da boa vontade dos outros. Em Blumenau, uma afrodescendente como eu, precisa mostrar o quanto é boa pra ser aceita.
- Sua mãe deve ter orgulho de você.
- Acho que sim. Ela sabe o quanto me esforço, trabalho e economizo. Depois da especialização que estou fazendo na UFP, vou comprar um apartamento. Depois, uma sala. É. Tenho muito trabalho pela frente.
Fiquei impressionada com a história da Janaína. Mais impressionada ainda, fiquei com a determinação e os sonhos de sucesso da crioula do cabelo crespo. Ela foi uma inspiração para mim. Ao longo destes últimos anos, também eu me meti a trabalhar mais e estudar mais. Saí da casa do meu pai. Aluguei um apartamento em Curitiba onde vivo com minha avó. Ela ajuda a pagar as contas, como a avó da Janaína ajuda. Hoje sei que faço o melhor que posso.
E Janaína é sempre muito bem vinda em nossa casa.