Poemário – Dia de relaxar

É domingo. 

Manhã carregada de vento,

sol recém nascido e perdido entre nuvens passeadeiras.

Lá fora, 

o cantar dos pássaros e o farfalhar das folhas das palmeiras,

inauguram os primeiros ruídos no meu refúgio,

no interior do interior, no sul do país.

Cá estou eu, com a caneca de café, 

quente e doce,

espiando a vida acontecer. 

Gatos passeiam tranquilos e seguros pelo gramado 

recém aparado;

vizinhos  caminham de cá para lá e de lá para cá;

cães latem ao longe,

o caminhão de gás passa apressado

  • em pleno domingo? –

carros transitam na rua de paralelepípedo.

E eu? 

Só observo.

A  vida por aqui, acontece em noventa graus.

Ando, de café em punho, pelo ambiente desnudo.

Quase tudo foi retirado.

Sobraram a velha poltrona, o tapete puído, o abajour enferrujado,

a lareira e eu.  

Todos esperando o frio voltar.

Na cozinha, o vinho e o queijo, também estão de prontidão.  

Duas taças, um saca-rolhas e uma tábua de frios.

Todo o enxoval gastronômico, deste momento, 

nesta casa, onde tudo é tão pouco 

e tão absoluto.

No cepo de nogueira, mesa improvisada,

contabilizo os livros deixados para trás.

Ficaram comigo, feito companheiros:

  1. Terapia do luto, de J. William Worden;
  2. Homens que odeiam suas mulheres & As mulheres que os amam, de Susan Forward;
  3. Não é mais como antes, de Massimo Recalcati;
  4. 50 contos de Machado de Assis, de John Gledson;
  5. Ser artista, de Marcus Montenegro;
  6. Toda luz que não podemos ver, de Anthony Doerr, e
  7. Woddy Allen, a autobiografia. A leitura do momento.

Abandono o livro dobrado e marcado. A vida do outro.

Desço as escadas e me embrenho no pequeno pomar. 

Me aproprio de quem sou e onde estou. A própria vida.

Meu pequeno poemário:

A constante fertilidade do bananal,

uma bergamoteira de galhos quebrados e muitas,

muitas frutas murchas,

a velha jabuticabeira. Depois de 25 anos, 

eis que a danadinha começa a produzir.

O tronco, mais parece pele de adolescente, 

salpicado de espinhas. Florzinhas. 

Frutos rechonchudos, em breve. 

Estarei eu, aonde?

Vou  voltar quando as jabuticabas brotarem e amadurecerem.

O que são seiscentos quilômetros

pra colher e comer a fruta direto do tronco, do galho, do pé?

Léia pode me avisar.  

Vira e mexe é ela quem abre as janelas,

e deixa o sol entrar. É ela que passa pano úmido no tacão de cumaru,

prepara a cama e as toalhas. 

É ela quem cuida do refúgio que cuida de mim.

Observo a piscina de águas turvas.

Turvo meus sentimentos.

O sol me abraça. O vento quente embaraça meus cabelos. 

Descalça ando pelo gramado,

acaricio e converso com os kaizucas e as estrelitzas,

as fênix e cicas. Buxos e aspargos. Cactos e algarves.

Sempre elogio a Três Marias que abraça o portão de entrada.

Haja talento para tanta floração. Cor carmim.

Percebo as dracenas verdes e rosas 

emparedadas sob o beiral da casa. Precisam ser aparadas.

Observo as orquídeas. Raquíticas e secas. Sem brotos. Sem vida.

Meu jardim maduro anda carente e descuidado. Estranhamo-nos.

Quase não escuto o que ele tem a me dizer. 

Não quero escutar.

Como posso me desfazer

do que pretendo deixar pra trás

sem deixar pra trás?

Como posso não sofrer sem abandonar?

Circulo por todo o jardim. 

Nas mãos, uma placa, com letras garrafais 

e números em vermelho.

Cor de sangue. De raiva. De paixão descarrilada.

O tormento de abandonar o que se ama.

Abandono a ideia, o plano , a placa.

Volto pra dentro. Fecho portas e janelas.

Preparo a lenha. Faço fogo na lareira.

Abro a garrafa de vinho tinto. Almaviva.

Corto nacos de queijo.

Jogo o pelego na poltrona, tomo Woody Allen nas mãos. Vou ler.

Lá fora, o vento continua. 

Traz nuvens negras e frio pra junto de mim.

A calor aconchega e o refúgio mostra a alma que ainda tem.

Quando chegar a hora,

Léia que coloque a placa em frente à casa.

Quando chegar a hora,

estarei à seiscentos quilômetros de distância.

E como bem dizem, 

o que os olhos não veem o coração não sente.

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