Carta de acolhimento às dores

Jurerê, 30 de julho de 2021

Às minhas dores com carinho

Cara dor de consciência! Cara dor da indecisão! Cara ansiedade, angústia e depressão. Caras dores físicas e emocionais que hoje me preenchem o corpo, a alma, os dias. 

Pelo visto estamos nos entendendo bem, já que não consigo afastá-las do meu dia a dia, nem das minhas noites insones. Ando às voltas com uma nova psicoterapeuta.

Só para avisá-las. 

A esperança é que ela me diga algo novo e inusitado, algo que me resgate das dúvidas e indecisões, para seguir em frente, deixando vcs comendo poeira e à léguas de distância de mim. Como dizem, a esperança é a última que morre, e sinceramente, depois de oito sessões, começo a olhar para vcs – dores da alma, do espírito e do universo psi – como minhas dores cativas, que me dão contorno e humanidade. O que seria de mim se não as tivesse? Como digo para meus próprios pacientes, terapeuta que sou, “qual a função do seu sintoma?”. Tenho me feito a mesma pergunta. Porque mantenho minhas dores emocionais e afetivas tão grudadinhas a mim? O que estou ganhando com isso, ou como diriam os profissionais da área, qual seu Ganho Secundário mantendo estas dores como visitas eternas? Tirando meu sobrepeso, minha insônia e minha pressão arterial (sob controle medicamentoso) nenhum outro sintoma físico tem me acometido. Li num desses Compêndios de Psiquiatria, que quando a dor emocional  é demais, não sobra espaço nem tempo para o corpo lidar com as dores físicas. Pelo menos estou consultando com a área médica/humana correta; a Psicologia. Talvez devesse buscar um psiquiatra e acalmar vcs com medicamentos de última geração, mas decidi que desta vez, vou trabalhar meu emocional como nos velhos e bons tempos de Freud e Jung: associação livre e catarse. Ou seja, vou remoer os ossos da emoção, re-compartimentalizar cada pedacinho de intelectualização e racionalização usados ao longo dos anos, realocando situações, sentimentos, mágoas e frustrações; exterminando alguns, amenizando outros, digerindo a maioria de vcs. O plano é este. E está em curso. Só para avisá-las.

Pq, caras dores, se não conseguir domá-las, reduzi-las, e tomara Deus, eliminá-las definitivamente da minha vida, em algum momento, a somatização será acionada e tomará conta de todo meu corpo físico. 

E aí, tenho medo do que virá. A área médica é uma ilustre e ameaçadora desconhecida. E meus mecanismos de defesa psicológicos, de nada adiantarão. Só para avisá-las. Então, tomem rumo.

Susi

Oliveta

Recebi uma carta da Oliveta me convidando pra assistir o eclipse do alto da montanha onde ela vive. Quem ainda, em pleno século vinte e um, manda cartas? Só ela mesmo. Deve estar sozinha e sem internet. Vou telefonar e avisar que passarei alguns dias com ela. Assim dá tempo dela organizar o sofá ou a cama.

Ao ler a carta bateu saudades da minha amiga bicho grilo, que escolheu viver nas montanhas, entre as bananeiras e a Lagoa de Itapeva. Escolhas que a gente faz quando se é jovem, inexperiente e sonhador. De qualquer forma, Oliveta parece ser feliz assim. Pra quem não conhece minha amiga, ela é a cara da Abigail, a atriz que interpreta a personagem no seriado da Netflix, Maria Magdalena. Tenho preferido assistir filmes e seriados inspirados em passagens da bíblia nestas noites de frio, chuva e neblina. Nada de romances xexelentos, nem filmes de ação ou super heróis.

Ando precisando relaxar. Botar o pé no chão. Colher flores e frutos do próprio pé. Oliveta deve ter mantido o canteiro de copos de leite e o abacateiro. O melhor abacate é aquele colhido do pé, amadurecido embrulhado em jornal. Fica docinho e cremoso, comido da própria casca, a polpa esmagada com garfo, uma colherada de açúcar e uma pitada generosa de canela.

Não posso esquecer de levar os chinelos de pelo e o cobertor. Os textos pra ler e papeis pra escrever. Oliveta é espartana demais em questões de conforto e papelaria. Me admira que ela ainda compre livros de papel. Virou uma defensora ferrenha das árvores. Será que ela já cortou aquele pinheiro torto, acho que é um kaizuca velho e podre, perigosamente inclinado sobre a casa dela? Vai saber. Espero ao menos, que ela tenha mantido a trilha ao redor do lago para correr, caminhar e tirar fotos. A vista que se tem das montanhas, daquele ângulo, quando o sol se põe é digno de um Sony World Photography Awards. Também não posso esquecer de colocar na mala a máquina fotográfica e o tripé. E um tapete. Não sei como Oliveta consegue viver sem um tapete do lado da cama. E uma luminária se quiser ler à noite. É desumano a forma como minha amiga vive naquele fim de mundo. Pelo menos tem asfalto até quase chegar lá. Precisa sair na última saída antes de entrar na Free Way. Senão, tem de seguir até Santo Antônio da Patrulha e retornar.

Onde anotei o telefone da Oliveta? Deve estar na agenda. Nada. Numa agenda antiga? Nada. Será que Oliveta não tem telefone em casa? Parece impossível, sabendo que até os massais, no interior do interior da África tem, mas com Oliveta, tudo é possível. O jeito é ir sem avisar. Sem remetente. Aparecer do nada, afinal fui convidada. Espero ao menos que quando chegar naquele estrupício de lugar, tenha fogo na lareira, estoque de nó de pinho e muito vinho. Porque ver o eclipse daquele lugar, só com muita reza. Será que Oliveta tem Netflix? Óbvio que não. Um televisor? Energia elétrica?