Intruso

Maltratadas, maltrapilhas, usadas, sujas,

amareladas com sardas cor de laranja,

pretas de pele acinzentada, esbranquiçadas.

Camisetas, jeans, bermudas, pijamas e jaquetas, sapatos e bolsas de couro, carteiras, toalhas e fronhas, lençóis, acolchoados, paredes, prateleiras, armários …

O olhar acerta o alvo. Expiro. Os olhos coçam. Arrasto tudo ao sol.

Me vou junto e me espreguiço por entre as cadeiras

que acomodam de tudo um pouco.

Quem vê de fora e de longe

vê um circo em dia de desmonte, casa alagada em dia de enchente.

Vejo fungos mascarados por toda parte,

resistentes e resilientes, vem e vão, ano após ano,

faxina após faxina.

O tempo passou, ninguém reparou

  • ou cansou de reparar –

À beira mar, a maresia e a brisa que vem do mar, ali, pertinho do olhar,

andam futricando com o bolor e o mofo.

Esta intimidade e fecundação e procriação 

me exasperam.

Se ajudasse, mergulhava a casa inteira no mar.

Não dá. Nem posso.

Resigno-me a expulsar este ilustre intrometido.

Ele volta. Sempre volta. 

Maldito mofo.

Eu faxineira

Estava eu às voltas com a construção da nossa casa de praia. Fora de temporada, éramos apenas eu e as gaivotas mais os lagartos e um ou outro passante. Nem sinal da faxineira. Empregada nem pensar. Como eu não podia deixar o caos tomar conta do meu paraíso na terra, arregacei as mangas e fiz o que qualquer faxineira ou empregada faria: coloquei lenço na cabeça, avental na barriga e a roupa mais detonada encontrada entre as caixas de mudança e os móveis inacabados ou desmontados. Os pedreiros e marceneiros, eletricistas e jardineiros, por algum motivo, não apareceram. Fiquei feliz com o sossego e a solidão inesperada.

O dia transcorria numa tranquilidade incrível quando meu celular tocou. Era o motorista da transportadora contratada que estava trazendo a escada helicoidal que ligaria meu atelier ao mezanino. Ele estava perdido por entre as ruas desertas do balneário. Orientei o dito cujo com todas as referências possíveis. A chance dele não encontrar a casa era inimaginável. Seguir sempre pela Avenida Búzios, a principal e mundialmente famosa avenida de Jurerê, até chegar na parada de ônibus número 6, dobrar à direita e de novo à direita. E lá estávamos nós: eu e minha casa. Depois de uns 15 minutos, fui do jeito que estava esperar pelo caminhão. O vi passando, e olhando na direção contrária a que eu estava. Fiz sinal, abanei as mãos e gritei mas ele não viu. Ou não reparou. O telefone tocou dentro de casa e fui atender. O caminhão passou de novo. Não cheguei à tempo e ele simplesmente sumiu por detrás das dunas. Esperei mais quinze minutos e nada. Me sentei na escada e esperei. Mais quinze minutos. O telefone tocou de novo e deixei tocar. Vai que o caminhão voltasse e eu o perderia mais uma vez por causa de uma ligação idiota de uma concessionária de telefonia. A esta altura, o tempo e o telefone insistente mais o sumiço do caminhão me deixaram intrigada. Decidi atender o telefone. Um inconveniente a menos. E bingo: era o motorista do caminhão. Mais perdido que cego em tiroteio ou cachorro em dia de mudança. Como ele foi parar na aldeia dos pescadores na Praia do Forte é algo absolutamente inexplicável. Fazer o que. Voltei pra frente de casa e orientei o motorista com todas as esquerdas e direitas que ele deveria seguir até chegar na esquina e me ver. E lá veio o caminhão de novo. O motorista parou na esquina, olhou pra mim e virou no outro sentido. Como se eu não existisse. Saí correndo, feito uma histérica. Por algum milagre, o motorista me viu pelo espelho retrovisor e brecou.

  • Puxa moço, o senhor não me viu na esquina fazendo sinal?
  • Estou procurando a casa da Dona Suzete.
  • Eu sou a Dona Suzete.

O motorista abriu a porta do caminhão, desceu e me olhou de cima a baixo.

  • Tem certeza?
  • Absoluta.

Arranquei o lenço da cabeça e o avental da barriga. Dei uma balançada nos cabelos. Abri dois botões da camisa e amarrei na cintura. Me abaixei e dei três voltas na barra da calça jeans. Enfim, deixei de ser a faxineira Suzete para ser a Dona Suzete.

Casa de praia

Quando se vive em casa de praia, a gente se diverte muito

– muito menos do que o mundo imagina -.

A gente vai pouco à praia, porque tá logo ali.

Então amanhã, depois, sempre, vai ter dia para ir, e quase nunca vai.

A gente recebe visita, amigo, parente. Come, bebe, dorme. Compra demais. Lê de menos. Descansa de menos. Menos do que gostaria. 

Tudo pode ser e normalmente é, demais. Ou, de menos.

A gente – quase sempre – nem percebe o quanto que fez.

Ou faz. Ou, está fazendo.

Talvez no inverno sobre tempo pra viver de verdade a temporada na casa da praia.