Cinderela, ou, A Gata Borralheira é o conto de fadas mais conhecido, e possivelmente, um dos mais apreciados em todo mundo. Existem mais de 300 versões do conto. As mais conhecidas são as de Perrault e a dos irmãos Grimm. O conto é antigo, sendo que uma das primeiras versões remontam à Elieno, orador e narrador romano, no século três. Outros atribuem as primeiras aparições do conto, à China do século nove, quando se falava da heroína dona de um incomparável pezinho. Pés pequenos para os chineses eram um sinal de virtude extraordinária, de distinção e beleza, sendo um costume na China antiga, enfaixar os pés das mulheres para torná-los extremamente pequenos, bonitos e delicados.
Qualquer conto de fada é a expressão mais pura e simples do psiquismo inconsciente da coletividade. Os contos são o esqueleto da psique. Eles tentam descrever um fato psíquico – normalmente complexo – de difícil representação quanto aos mais diferentes aspectos. A quantidade de contos e suas numerosas versões tornam-se necessárias para que possam penetrar a consciência, sem que o tema seja totalmente exaurido. Jung chama de SELF a totalidade psíquica do indivíduo, mas também, define o SELF como o centro regulador do Inconsciente Coletivo. Ou seja, indivíduos e grupos tem suas próprias formas de experienciar a realidade psíquica. Por isso, diferentes contos de fada retratam diferentes fases desta experiência individual ou coletiva.
Segundo Marie-Louise von Franz “nossa tradição escrita data aproximadamente de 3.000 anos e o que é mais interessante, os temas básicos não mudaram muito.” (pg. 12) Constatou-se a aparição dos mesmos temas, em milhares de variações nos mais diferentes lugares, como: França, Rússia, Finlândia, Itália, etc. As diferentes versões do conto, sugerem diferentes versões das várias formas de Arquétipo, podendo tornar-se símbolo central de algum evento ou crença humanas.
Jung define o arquétipo como “ … possibilidades herdadas para representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma … Seja qual for sua origem, o arquétipo funciona como um nódulo de concentração de energia psíquica.” (Nise da Silveira, pg 68/69)
Assim, enquanto o inconsciente pessoal é decorrente de experiências e vivências individuais, o inconsciente coletivo é impessoal, comum a toda humanidade e transmitido hereditariamente.
Marie- Louise von Franz afirma que “ Um arquétipo é um impulso psíquico específico que produz seus efeitos como um único raio de irradiação e, ao mesmo tempo, um campo magnético expandindo-se em todas as direções.” (pg 11) Um arquétipo não é somente um pensamento padrão, mas também uma experiência emocional. Jung afirma, que se podem encontrar todas as Grandes Mães do mundo, todos os santos, e tudo que se possa imaginar, mas se não conseguirmos interligá-los à experiência afetiva do indivíduo, nada de substancial teremos. Afirma também, que todos os arquétipos acabam sendo contaminados, um pelo outro, no inconsciente.
Quanto à interpretação dos contos de fada, a autora afirma que “Interpretação é uma arte”, exclusivamente pessoal, tipo confessional. Segundo ela, pode-se interpretar o conto de fada, usando as quarto funções da consciência:
Tipo Pensamento: apontará a estrutura do conto e como todos os elementos se relacionam;
Tipo Sentimento: haverá uma busca por valores hierarquicamente mais importantes e valorosos;
Tipo Sensitivo: contenta-se em olhar e identificar os símbolos, para depois, amplificá-los;
Tipo Intuitivo: verá o conto em sua totalidade.
Possivelmente é o tipo intuitivo quem melhor entenderá o conto em sua totalidade, percebendo que o conto não é apenas uma história discursiva, mas, uma única mensagem com muitas facetas.
Antes de apresentar a Análise Simbólica de Cinderela –num próximo post– é imprescindível apresentar o Conto (é só clicar na palavra Conto – em vermelho – para ir ao post com a estória completa de Cinderela, na versão dos Irmãos Grimm), listar os Capítulos, conforme temas específicos, a Estrutura Básica, os trabalhos artísticos, e só então, apresentar a Análise Simbólica (em processo de revisão). O Conto Pessoal, fechamento desta etapa da formação, aconteceu de modo imediato – quase instantâneo – no final de uma aula, alguns meses atrás.
Os Capítulos:
Onde tudo acontece: o mapa do conto.
Era uma vez … Uma família feliz, com mãe e pai, atenciosos e carinhosos;
A mãe adoece e morre… Mas antes, aconselha Cinderela a ser uma boa e piedosa menina;
O pai casa novamente e Cinderela fica duplamente órfã… Cinderela é transformada em empregada da casa, pela madrasta megera. Surge a rivalidade das irmãs desleais;
O pai dá presentes … Cinderela contenta-se com o galho de aveleira, que se transforma em árvore;
O príncipe escolhe sua Princesa … São preparadas 3 noites de baile e o príncipe conhece Cinderela;
A Procura … Quem é? O príncipe procura pela amada.
O Engodo … As irmãs – desleais – tentam enganar o príncipe, tentando de formas desesperadas fazerem caber o pé dentro do sapatinho;
A Princesa é encontrada … O príncipe encontra Cinderela e casa-se com ela;
A cegueira das irmãs … No casamento, os pombos cegam as irmãs.
A Estrutura Básica: Segundo minhas próprias observações e conclusões.
Início: A morte da mãe – perda da imagem idealizada, mágica e irreal de si mesma
Ruptura: O casamento do pai com a madrasta. Cinderela é transformada em empregada, as irmãs exigem vestidos e jóias, enquanto Cinderela, contenta-se com um galho de aveleira – a realidade e o pensamento mágico/etéreo impõe um Princípio de Realidade.
Confronto: Cinderela vai aos três bailes, desafiando a proibição da madrasta;
Superação de Obstáculos e Perigos: Cinderela foge do Príncipe, e de ser reconhecida, três vezes, pedindo ajuda aos pássaros e à mãe –
Restauração: O Príncipe encontra Cinderela. O sapato serve como uma luva – A Identidade está quase definida.
Desfecho: Cinderela e o Príncipe casam-se e as irmãs ficam cegas – A integração total do EGO.
Esta é a primeira parte – e a mais longa – do trabalho dos Contos de Fada. (Trabalho este que encerra o segundo ano da Formação em Arteterapia). É na Análise Simbólica (próximo post em Arteterapia) que estudamos os símbolos universais, integrando-os numa análise analítica (junguiana) para entender – não apenas o conto da Cinderela – mas também, futuros pacientes com suas produções artísticas e oníricas. Também seguem no próximo post, as Referências Bibliográficas que deram embasamento teórico à todo trabalho.
Meu trabalho de conclusão do segundo ano do curso de Arteterapia é fazer a análise junguiana do meu Conto de Fadas preferido: Cinderela. Eis o conto original:
Cinderela
Há muito tempo, aconteceu que a esposa de um rico comerciante adoeceu gravemente e, sentindo seu fim se aproximar, chamou sua única filha e disse:
– Querida filha, continue piedosa e boa menina, que Deus a protegerá sempre. E lá do céu olharei por você, e estarei sempre ao seu lado. – Mal acabou de dizer isso, fechou os olhos e morreu.
A jovem ia todos os dias visitar o túmulo da mãe, e chorava muito. Veio o inverno, a neve cobriu o túmulo com seu alvo manto. Chegou a primavera, o sol derreteu a neve, e o viúvo tornou a se casar. A nova esposa trouxe suas duas filhas, ambas louras e bonitas, mas só exteriormente. Tinham a alma feia e cruel. Então começaram os dias difíceis para a pobre enteada.
– Essa imbecil não vai ficar no quarto conosco! – reclamaram as moças. – Lugar dela é na cozinha! Se quiser comer pão, que trabalhe!
Tiraram-lhe o vestido bonito que ela usava, obrigaram-na a vestir outro, velho e desbotado, e a calçar tamancos.
– Vejam só como ela está toda enfeitada e orgulhosa princesinha de antes! – disseram a rir, levando-a para a cozinha.
A partir de então, ela foi obrigada a trabalhar de manhã à noite nos serviços pesados. Era obrigada a levantar-se de madrugada para ir buscar água e ascender o fogo. Era ela quem cozinhava e lavava. Como se não bastasse, as irmãs caçoavam dela e a humilhavam. Despejavam lentilhas e feijões nas cinzas do fogão, para obrigá-la a catá-los. À noite, exausta de tanto trabalhar, ela não tinha onde dormir e era obrigada a se deitar sobre as cinzas do fogão, só a chamavam de Cinderela. Uma vez, o pai resolveu ir a uma feira. Antes de sair, perguntou às enteadas o que desejavam que ele trouxesse.
– Vestidos bonitos – disse uma.
– Pérolas e pedras preciosas – disse a outra.
– E você, Cinderela, o que vai querer? – perguntou o pai.
– No caminho de volta, pai, quebre o primeiro ramo que bater no seu chapéu e traga-o para mim.
Ele partiu para a feira, comprou vestidos bonitos para uma enteada, pérolas e pedras preciosas para a outra e, de volta para casa, quando cavalgava por um bosque, um ramo de aveleira bateu no seu chapéu. Ele quebrou o ramo e levou-o. Chegando em casa, deu às enteadas o que elas haviam pedido, e à Cinderela o ramo de aveleira. Ela agradeceu, levou o ramo para o túmulo da mãe, plantou-o ali, e chorou tanto que suas lágrimas regaram o ramo. Ele cresceu e se tornou uma aveleira linda. Três vezes, todos os dias, a menina e a chorar e rezar debaixo dela. Sempre que a via chegar, um passarinho branco voava para a árvore e, se a ouvia pedir baixinho alguma coisa, jogava-lhe o que ela havia pedido. Um dia o rei mandou anunciar uma festa que duraria três dias. Todas as jovens bonitas do reino foram convidadas, pois o filho dele iria escolher entre elas aquela que seria sua futura esposa. Quando souberam que também deveriam comparecer, as duas filhas da madrasta ficaram contentíssimas.
– Cinderela! – gritaram. – Venha pentear nosso cabelo, escovar nossos sapatos e nos ajudar a vestir, pois vamos a uma festa no castelo do rei!
Cinderela obedeceu chorando, porque ela também queria ir ao baile. Perguntou à madrasta se poderia ir, e esta respondeu:
– Você, Cinderela! Suja e cheia de pó, está querendo ir à festa? Como vai dançar se não tem roupa nem sapatos?
Mas Cinderela insistiu tanto, que afinal ela disse:
– Está bem. Eu despejei nas cinzas do fogão um tacho cheio de lentilhas. Se você conseguir catá-las todas em duas horas, poderá ir.
A jovem saiu pela porta dos fundos, correu para o quintal e chamou:
– Mansas pombinhas e rolinhas!
Passarinhos do céu inteiro!
Venham me ajudar a catar lentilhas!
As boas vão para o tacho!
As ruins para o seu papo!
E entraram pela janela da cozinha duas pombas brancas; a seguir vieram rolinhas e, por último, todos os passarinhos do céu chegaram numa revoada, e pousaram sobre as cinzas. As pombas baixaram a cabecinha e pic, pic, pic, apanhavam os grãos bons e deixavam cair no tacho. As outras avezinhas faziam o mesmo e pic, pic, pic – não levou nem uma hora, o tacho ficou cheio e as aves todas se foram voando. Cheia de alegria a menina levou para a madrasta, certa de que agora poderia ir à festa. Porém a madrasta disse:
– Não, Cinderela. Você não tem roupa e não sabe dançar. Só serviria de caçoada para os outros.
– E como a menina pôs-se a chorar, ela propôs: – Se você conseguir catar dois tachos de lentilhas em uma hora, poderá ir conosco. – E para si mesma ela disse: – Isso ela não vai conseguir…
Assim que a madrasta acabou de espalhar os grão nas cinzas, Cinderela correu para o quintal e chamou:
– Mansas pombinhas e rolinhas!
Passarinhos do céu inteiro!
Venham me ajudar a catar lentilhas!
As boas vão para o tacho!
As ruins para o seu papo!
E entraram pela janela da cozinha duas pombas brancas; a seguir vieram rolinhas e, por último, todos os passarinhos do céu chegaram numa revoada, e pousaram sobre as cinzas. As pombas baixaram a cabecinha e pic, pic, pic, apanhavam os grãos bons e deixavam cair no tacho. As outras avezinhas faziam o mesmo e pic, pic, pic – não passou nem meia hora, os dois tachos ficaram cheios, e as aves foram voando pela janela. Então a menina levou os dois tachos para a madrasta, certa de que desta vez, ela poderia ir à festa. Porém a madrasta disse:
– Não adianta, Cinderela. Você não vai ao baile! Não tem vestido, não sabe dançar e só nos faria passar vergonha! – E dando-lhe as costas, partiu com suas orgulhosas filhas.
Quando ficou sozinha, Cinderela foi ao túmulo da mãe, e ficando embaixo da aveleira, disse:
– Balance e se agite,
Árvore adorada,
Cubra-me toda de
ouro e prata!
Então o pássaro branco jogou para ela um vestido de ouro e prata e sapatos de seda bordada de prata. Cinderela vestiu-se a toda pressa e foi para a festa, Estava tão linda em seu vestido dourado, que nem as irmãs, nem a madrasta a reconheceram. Pensaram que ela fosse uma princesa estrangeira, pois, para elas, Cinderela só podia estar em casa, catando lentilhas na cinza. Logo que a viu, o príncipe veio ao seu encontro e, pegando-lhe a mão, levou-a para dançar. Só dançou com ela, e não largou de sua mão nem por um instante. Quando alguém a convidava para dançar, ele dizia:
– Ela é minha dama.
Dançaram até altas horas da noite e, afinal, Cinderela quis voltar para casa.
– Eu a acompanho – disse o príncipe. Na verdade ele queria saber a que família pertencia.
Mas Cinderela conseguiu escapar dele, correu para casa e escondeu-se no pombal. O príncipe esperou o pai dela chegar e contou-lhe que a jovem desconhecida tinha se escondido dentro do pombal. Deve ser Cinderela…”, pensou o pai. E mandou vir um machado para arrombar a porta do pombal. Mas não havia ninguém lá dentro. E, quando chegaram em casa, encontraram Cinderela com suas roupas sujas, dormindo nas cinzas à luz mortiça de uma lamparina. É que a menina, nem bem havia entrado no pombal, saíra pelo lado de trás e correra para a aveleira. Ali, rapidamente tirou o belo vestido e deixou-o sobre o túmulo. Veio o passarinho, apanhou o vestido e levou-o. Ela vestiu novamente seu vestidinho velho e sujo, correu para casa e deitou-se nas cinzas da cozinha. No dia seguinte, o segundo dia da festa, quando os pais e as irmãs partiram para o castelo, Cinderela foi até a aveleira e disse:
– Balance e se agite,
Árvore adorada,
Cubra-me toda de
ouro e prata!
E o pássaro jogou para ela um vestido mais bonito do que o da véspera. Quando ela entrou no salão assim vestida, todos pasmaram com sua beleza. O príncipe que a esperava, tomou-lhe pela mão e só dançou com ela. Quando alguém convidava a jovem para dançar, ele dizia:
– Ela é minha dama.
Já era noite avançada quando Cinderela quis voltar para casa. O príncipe seguiu-a para ver em que casa entraria. Porém a jovem inesperadamente entrou no quintal atrás da casa e, ágil como um esquilo, subiu pela galharia de uma frondosa pereira carregada de frutos que havia ali. O príncipe não conseguiu descobri-la e, quando viu o pai dela chegar, disse:
– A moça desconhecida escondeu-se nessa pereira.
“Deve ser Cinderela…”, pensou o pai. Mandou buscar um machado e derrubou a pereira. Mas não encontraram ninguém na galharia. Como na véspera, Cinderela com suas roupas sujas, dormindo na cozinha nas cinzas, pois havia escorregado pela pereira, correra para a aveleira, e devolvera o lindo vestido ao pássaro. Depois vestiu o feio vestidinho de sempre, e correu para casa. No terceiro dia, assim que os pais e as irmãs saíram para a festa, Cinderela foi até o túmulo da mãe e pediu a aveleira:
– Balance e se agite,
Árvore adorada,
Cubra-me toda de
ouro e prata!
E o pássaro atirou-lhe o vestido mais suntuoso e brilhante que ela já possuíra, acompanhado de um par de sapatinhos de puro ouro. No castelo, quando a viram chegar, ela estava tão linda, tão linda, que todos emudeceram de assombração. O príncipe só dançou com ela e, como das outras vezes, dizia a todos que vinham tirá-la para dançar:
– Ela é minha dama.
Já era noite alta, quando Cinderela quis voltar para casa. O príncipe tentou segui-la, mas ela escapou tão depressa, que ele não pôde alcançá-la. Desta vez, porém, o príncipe usou de um estratagema: untou com piche um degrau da escada e, quando a moça passou, o sapato do pé esquerdo ficou grudado. Ela deixou-o ficar e continuou correndo. O príncipe pegou-o. Era pequenino, gracioso e todo de ouro. No outro dia de manhã, ele procurou o pai e disse:
– Só me casarei com a dona do pé que couber neste sapato.
As irmãs de Cinderela ficaram felizes e esperançosas quando souberam disso, pois tinham pés delicados e bonitos. Quando o príncipe chegou à casa delas, a mais velha foi para o quarto acompanhada da mãe e experimentou o sapato. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguiu meter o dedo grande do pé dentro dele. Então a mãe deu-lhe uma faca, dizendo:
– Corte fora o dedo. Quando você for rainha, vai andar muito pouco a pé.
Assim fez a moça. O pé entrou no sapato e, disfarçando a dor, ela foi ao encontro do príncipe. Ele recebeu-a como sua noiva e levou-a na garupa de seu cavalo. Quando passavam pelo túmulo da mãe de Cinderela, que ficava próximo ao caminho, duas pombas pousaram na aveleira e cantaram:
– Olhe para trás! Olhe para trás!
Há sangue no sapato,
que é pequeno demais!
Não é a noiva certa
que vai sentada atrás!
O príncipe virou-se, olhou o pé da moça e, vendo o sangue escorrendo do sapato, fez o cavalo voltar e levou-a para a casa dela. Chegando lá, ordenou à outra filha da madrasta que calçasse o sapato. Ela foi para o quarto e calçou-o. Os dedos do pé entraram facilmente, mas o calcanhar era grande demais e ficou de fora. Então a mãe deu-lhe uma faca dizendo:
– Corte fora um pedaço do calcanhar. Quando você for rainha, vai andar muito pouco a pé.
Assim fez a moça. O pé entrou no sapato e, disfarçando a dor, ela foi ao encontro do príncipe. Ele recebeu-a como sua noiva e levou-a na garupa de seu cavalo. Quando passaram na aveleira, duas pombas pousaram num de seus ramos e cantaram:
– Olhe para trás! Olhe para trás!
Há sangue no sapato,
que é pequeno demais!
Não é a noiva certa
que vai sentada atrás!
O príncipe olhou o pé da moça, viu o sangue saindo do sapato e a meia branca, vermelha de sangue. Então virou o cavalo, levou a moça de volta para casa e disse ao pai:
– Esta também não é a verdadeira noiva. Vocês não têm outra filha?
– Não – respondeu o pai – a não ser a pequena Cinderela, filha de minha falecida esposa. Mas é impossível que seja a noiva que procura.
O príncipe ordenou que fossem buscá-la.
– Oh, não! Ela está sempre suja! Seria uma ofensa trazê-la a vossa presença! – protestou a madrasta.
Porém o príncipe exigiu que fossem chamá-la. E, depois de ter lavado o rosto e as mãos, ela veio, curvou-se diante do príncipe e pegou o sapato de ouro que ele lhe estendeu. Então, sentou-se num banquinho, tirou o pesado tamanco e calçou o sapato. Ele lhe serviu como uma luva. E quando se levantou, o príncipe viu o seu rosto e reconheceu a linda jovem com quem havia dançado.
– É esta a noiva verdadeira! – exclamou feliz.
A madrasta e as filhas levaram um susto e ficaram brancas de raiva. O príncipe ergueu Cinderela, colocou-a na garupa de seu cavalo e partiram. Quando passaram pela aveleira, as duas pombinhas brancas cantaram:
– Olhe para trás! Olhe para trás!
Não há sangue no sapato,
que serviu bem demais!
É a noiva certa.
Pode ir em paz!
E, quando acabaram de cantar, elas voaram e vieram pousar , uma no ombro direito de Cinderela, outra no esquerdo, e ali ficaram. Quando o casamento de Cinderela com o príncipe se realizou, as falsas irmãs vieram à festa. A mais velha ficou à direita do altar, e a mais nova à esquerda. Subitamente, sem que ninguém pudesse impedir, a pomba pousada no ombro esquerdo da noiva voou para cima da irmã mais velha e furou-lhe os olhos. A pomba do ombro direito fez o mesmo com a mais nova, e ambas ficaram cegas para o resto de suas vidas.
Irmãos Grimm
Animada, comprei o DVD do filme, me refestelei no sofá e assisti a historia. Depois li o conto original e reli a Cinderela que eu conhecia e contava pros meus filhos. Surtei. Fiquei indignada e muuuuuuito chateada.
Como é possível o pai de Cinderela não morrer e ainda se tornar cúmplice da madrasta megera e renegar a própria filha? Três noites de baile e nada das doze badaladas do relógio? Cadê a abóbora que se transforma em carruagem? Sapatinho de ouro ao invés de cristal? Como é possível o conto terminar com a cegueira das irmãs e não com o “ E viveram felizes para sempre?”
Passado o momento “ a mais enganada de todas as criaturas”, meu arquétipo de vitima injustiçada deu uma trégua. Muitos dos contos e fábulas foram alterados ao longo dos anos nas cortes europeias (e não apenas pela Dysney) para não chocar, e também para agradar o gosto palaciano. Foi assim que aprendemos os contos de fadas bonzinhos. A perversão e a crueldade foram banidas ou maquiadas, reduzidas a maldade de criancinhas e mulheres mal amadas e travessas.
Depois de fazer a análise psicanalítica de Harry Potter – também um trabalho de conclusão de uma formação acadêmica – imaginei que Cinderela seria “mamão com açúcar”. Que nada!!!! Além do livro de imagens feitas em cartolina, tintas, guache e pinceis, a interpretação simbólica dos elementos do conto tem sido algo como decifrar o cubo magico. Conceitos como anima e animus, sombra, circulo psico- orgânico e a plenitude cósmica andam se digladiando com os conceitos psicanalíticos de Bruno Bettelheim. Para mim, o simples fato de escolher o conto de fadas Cinderela já representa uma identificação projetiva pura. Analisar Cinderela é analisar-me.
O primeiro passo, obvio, é estudar e me familiarizar com a teoria do circulo psico-organico e os conceitos junguianos. Trabalhar minhas próprias transferências e contra-transferências. Uma pesquisa detalhada no grande dicionário dos Símbolos. E lógico, uma espiadinha no senhor Google.Uma dose extra de vinho também deve ajudar.