Uma dádiva

Outono quente e barulhento em Jurerê.

Caminhar tem sido uma dádiva,

física e mental.

Pés na areia molhada, água gelada, olhos vidrados no mar.

Na maré baixa as conchas passeiam na orla, 

entre elas, 

um presente inesperado. 

Uma argonauta cor de laranja.

Me dobro em duas e a acalento nas mãos. Obrigada marzão.

Hoje, este marzão mais parece uma lagoa azul.

Os caminhantes são poucos, 

alguns de máscara,

outros não.

Todos atentos à direção e ao caminho.

Olhamo-nos. Desviamo-nos. 

Assim caminha a humanidade em tempos de COVID19.

O mar, a areia, os peixes, as conchas, as pedras, os pássaros … Estes

tem sido meus parceiros de caminhada.

Uma dádiva.

Calor

Calor calor calor

Quanto ardor.

Um pavor de horror.

Sim, o calor me deprime, me oprime.

Viro peste de poucas vestes.

Reparo arestas e saliências. Protuberâncias e jactâncias.

Exposta me reparo inteira. Desgosto e gosto.

Gosto e desgosto. O olhar que mal vê.

O dia a sol aberto, cega, queima, 

fuzila o olhar.

Saudade do mar, do ar a beira mar.

Anseio pra lá voltar.

Mar de outono

O rugido do mar me intimou.

Estive ausente. O ouvi quando cheguei ontem.

Dormi ninada e mimada por ele. Cantiga de ninar este mar que aprendi a amar.

Um sono embalado e cadenciado. Sonho bom.

Fui. Final de tarde. Final de verão.

O outono paira no ar. No mar.

As montanhas, ao longe, também.

Azul grafite. Marinho. Celeste. A água “tíbia”.

Nada de golfinhos, nem peixes . As ondas se desenrolam a meus pés.

Na areia nada de conchas. Apenas o reflexo do céu.

Espelho de cores e formas.

Amarelo, azul e branco pintado de peixes e gaivotas, estilizadas ao vento.

A noite cai rápido. O estranho agito na maré que sobe,

nos pássaros que se afastam, nos ciclistas e passantes que aceleram.

O dia finda. Arranco a roupa do corpo

me perco na noite a beira mar.

A água, continua tíbia.

Maré alta

Manhã da cor do chumbo.

Quero-queros também. Eles caminham junto.

As corujas só observam. Giram-se atentas nesta manhã acabrunhada.

O céu floreado de cinza e branco. Bordado em azul.

O mar como espelho. Sujo, cinza, contido. Sentido.

Alguns banhistas chegam junto. Chego também.

Muitos não veem, não escutam, não falam.

São zumbis contemporâneos de celular na mão.

Cinzentos. Contidos. O mar à frente não encanta.

Está indeciso. Estamos todos nós.

Não sabe o mar, se jorra em ondas ou se contenta com a serenidade de lago.

Também não sabemos.

Foi trator e carregou a praia. Inclinado e desajustado ficou o caminho.

A corrente marinha leva e trás. Pra frente e pra trás.

Não sei o que é. Mas algo se passa nas profundezas do mar.

Também ele, hoje amanheceu errado.

Um espelho o mar de Jurerê.

 

 

Cocorocas ao mar

A água estava boa?

Estava muito suja. Digo eu.

Choveu demais, comenta o menino das cadeiras e guarda-sois.

O mar de Jurerê, cor de esmeralda tom de pedra aventurina.

Um xixi de mar calmo e límpido, num vai e vem de ondas comportadas. Sempre.

Elas podem até se erguer pra ver a restinga. Uma espiada marota.

Mas, nada de aflições:

um óculos perdido, alguns goles d’água, olhos avermelhados, cabelos ressecados. Mareados.

Marolinhas na imensidão do mar.

No calor da temporada, chuvaradas barulhentas assustam.

Porém, sujam de verde de mato o mar de esmeraldas.

Nestes dias quentes e sujos

mais peixes vem ver a estranheza do lugar.

Quando a gente vê, vê peixe caçando peixinho, peixe saltando,

xispando em disparada e surfando ondas junto da gente, assim:

a uma ondinha de distância.

O risco de atropelamento é grande. Sequer pedem desculpas.

Cutucos gratuitos. Meio alarmantes.

Se fosse em Boa Viagem, no Recife, haveria gritaria: tubarão na água.

Por aqui, a gente sabe: é cocoroca na água.

Saltitando feliz brincando de verão.

A gente brinca junto.

Estrelas do mar

Domingo de sol e solidão.

Sol sereno. Solidão que acalanta.

Vou caminhar.

O mar ao longe, ruge ferozmente;

Ele cobra docilmente:

Por onde andei todos estes dias?

Perdida. De mim. De tudo e de todas as coisas.

Me perdoe.

Estive longe.

Estive na sinuosidade do rio que me viu crescer.

Mar 1

Ao acolher o que vejo, escuto e sinto,

um convite me instiga.

A maré ALTA engoliu tudo.

Nada de conchas. Nada de gaivotas.

Duas estrelas do mar repousam na areia endurecida.

Repousam?

Carrego-as comigo. Sequer questiono:

Estão vivas? Mortas? Estão como eu.

Adormecidas ou perdidas no leito endurecido que as acolheu.

Sei disso. Sinto. Pressinto.

Seu destino? Igual ao meu. Seco. Duro.

Um bibelô.

estrelas do mar

Depois da chuva

Depois da chuva, o sol.

Depois de frio, o sol. Com ele,

o convite para o dia, para a vida.

Caminho pela praia e recolho um abraço de conchas,

recolho também garrafas plásticas, tampinhas, canudinhos …

a seara de lixo encrustada pela chuva, pelo frio,

pela insensibilidade e falta de tato e jeito e tudo

que intoxica o mar. A vida marinha.

Meus olhos. Os teus.

 

Obrigada, marzão.

De nada, marzão.

Manhã de caminhada

Bom amanhecer com o pé na areia e o olho no mar.

O mar manso, espelho para nuvens, chuva e sol.

Algumas ondas e conchas, miúdas.

Quero-queros, pombos, gaivotas. Alguns.

Andarilhos, caminhantes, atletas. Poucos.

O dia recém mostra sua cara que começa a acontecer:

no mar, o retrato do céu de outono começa a invernar,

tatuíras mergulham de ponta-cabeça na areia molhada,

a chuva se aproxima, as nuvens escurecem, o sol se esconde. Os pássaros voam.

Apresso o passo.

A chuva cai.

Volto pra casa.

Lá, o sol, encabulado, me aguarda.

Amanhecer 2

Presente do mar

Anne Morrow Lindberg

O livrinho, pequeno em tamanho e gigantesco nas reflexões, foi originalmente escrito em 1955, e reeditado em 1975. A autora buscou na solidão de uma ilha e no contato com as conchas, um bálsamo para seus conflitos pessoais.

conchas 2

“Pois ser mulher é ter interesses e obrigações que irradiam em todas as direções a partir de um núcleo materno central, como os raios que partem do centro de uma roda. O padrão de nossas vidas é circular em sua essência. Precisamos estar abertas a todos os pontos da circunferência: marido, filhos, amigos, casa, comunidade: tensionadas, expostas, sensíveis a cada apelo, como uma teia de aranha que balança a cada brisa que sopra. Como é difícil alcançarmos um equilíbrio entre tantas tensões contraditórias! E, ao mesmo tempo, esse equilíbrio é essencial para o funcionamento adequado de nossas vidas.” (p. 37-38)

“E aqui me confronto com um estranho paradoxo. Instintivamente, a mulher quer se doar; no entanto, fica ressentida por se dar em pequenas doses. Seria este um conflito básico? Ou eu é que estaria simplificando demais um problema muito mais complexo? Acredito que a mulher não se ressinta tanto por se dar em pequenas doses, mas por se dar em vão. Não receamos o fato de que nossa energia possa estar sendo escoada por pequenas brechas, mas que possa estar se perdendo pelo caminho. O problema é que não vemos os resultados de nossa doação de forma tão concreta, como acontece com o homem em seu trabalho.” (p. 53)

“Na verdade, este é um dos momentos mais importantes de nossas vidas – quando estamos sozinhos. Algumas fontes começam a jorrar apenas quando estamos sós. O artista precisa ficar só para criar; o escritor, para elaborar seus pensamentos; o músico, para compor; o santo, para rezar. A mulher precisa de solitude para reencontrar sua verdadeira essência, núcleo indispensável a partir do qual será tecida toda uma gama de relações humanas. Ela precisa encontrar a quietude interior que Charles Morgan descreve como “a quietude da alma em meio às atividades da mente e do corpo, para que ela se torne tão serena como o eixo de uma roda em movimento.”(p. 57)

“As ondas ecoam atrás de mim. Paciência, fé, compreensão. É isto que nos ensina o mar. Simplicidade, solitude, intermitência … Mas há outras praias para se explorar. Há outras conchas para se encontrar. Este é apenas o começo.”(p. 127)

Eu, minha natureza

Cresci entre a montanha e o rio.

Entre o verde da mata e o cascalho cinzento do rio

de temperaturas e cores imprecisas.

O vale sinuoso – verdadeira obra de arte –

Emoldurado pela terracota, o dourado, o verde e o azul.

O contraste das cores na palheta de tons

Refletindo a energia e a beleza interiorana.

Cresci ouvindo guinchos de bugios, miados de gato, coachar de sapos.

Tico-ticos e quero-queros competindo com joão de barros e canários da terra.

Cascudos e pintados encurralados em covos e anzóis.

Cigarras e corujas orquestrando

  • dia e noite –

sinfonias sem partituras.

O balançar das carroças, o trotar dos cavalos

E o passo cadenciado do gado

Marcaram a carne e demarcaram sua posse.

Meu amor pela terra é vital.

É dela que brota, cresce e floresce

A força de toda uma gente.

sou parte dessa gente.

Parte de mim é montanha.

Parte, é rio.

Esse todo é passado.

O futuro amanhece comigo.

Saio do quarto e vejo emoldurado

O mar

  • crispado verde, cinza ou azulado –

por todo o horizonte a me abraçar.

Veleiros e barcos singram as águas,

As gaivotas vem, sobrevoam minha morada e convidam:

Elas querem me conduzir ao mar.

Porém, entre nós

– o mar e eu –

além da pequena distância,

existe uma agenda de compromissos e uma imensa preguiça.

Por ora, existe apenas atração física.

Amor platônico, talvez.

O amor precisa de paixão e namoro. De tempo.

Estou em falta com o tempo e o mar.

Com o amor.

O futuro anoitece comigo ao som das ondas.

Elas sempre me encontram.

 Elas querem me namorar.

Maré alta

“O mar amanheceu raivoso,

ficou marrom de nervoso.

Foi a água doce.

Revoltado,

engoliu a praia

lascou, quebrou e escorraçou as conchas,

deu força aos pequenos grãos de areia

que desmoronaram ao largo.

A brisa virou vento sibilante.

Até os pés-amarelos estranharam.

Os bicos-vermelhos

e as mini-cegonhas

fizeram de conta que não era nada.

As gaivotas deram seus rasantes

e voaram longe.

Tudo por causa

da doçura que seduziu e possuiu o mar.

Bruma fingida no horizonte

se despejou assanhada e inteira.

Também fico nervosa

com transações nebulosas.

Ficamos os dois endiabrados.”