A indumentária

“Por que os fantasmas sempre aparecem vestidos? Sendo a morte um segundo nascimento, por que não surgem ao natural, tal como vieram a este mundo? Será que o Outro Mundo tem desses puritanismos? Nada disso! É que os fantasmas ficam com vergonha de que a gente descubra que as almas não tem sexo. “

                                    (Da preguiça como método de trabalho – Mario Quintana, p. 79)

Quintana

Depois dos primeiros livros do ano, me debandei e fui ler poesia. Há quem diga que é fácil ler poesia; que rende, que a gente passa num revesgueio de olhos.

Projeto de Prefácio

“Sábias agudezas … refinamentos …

  • não!

Nada disso encontrarás aqui.

Um poema não é para te distraíres

Como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.

Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe

Um poema não é também quando paras no fim,

Porque um verdadeiro poema continua sempre …

Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te

[para a morte

não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!”

( Baú de Espantos – pg. 125)

Normalmente preciso reler cada poesia. Uma ou duas vezes. Comum me perder no raciocínio do poeta.

O último poema

“Enquanto me davam a extrema-unção,

Eu estava distraído …

Ah, essa mania incorrigível de estar

[pensando sempre noutra coisa!

Aliás, tudo é sempre outra coisa

  • segredo da poesia –

E, enquanto a voz do padre zumbia como

[um besouro,

Eu pensava era nos meus primeiros sapatos

Que continuavam andando, que continuam andando,

Até hoje

Pelos caminhos deste mundo.”

(Preparativos de viagem – pg. 68)

A poesia nos faz rodopiar por tempos e lugares no estalar de poucas palavras. Quando a gente vê, perdeu o fio da meada. Foi do tricô pro crochê, da lã pra tinta, do barro pro barbante. De Marte pra Babilônia. Do vento para o céu. Dos anjos para a infância direto para o leito de morte. Não é à toa que poesia é recomendado para os esquecidos desmemoriados e pobres de raciocínio. Quem lê sente a malhação cerebral. Talvez por isso tenha escolhido Mario Quintana, companheiro de piscina e verão. Logo ele! Deve estar se revirando na cova, sua última morada.

“A coisa mais natural da vida é a morte;

A coisa mais absurda da vida é a própria vida.”

(Velório sem Defunto – pg. 69)

Com os dias de calor e claridade infernais me coloquei a reler textos de Quintana. Encomendei alguns novos. É difícil encontrar Quintana nas livrarias. Bendita Internet! E assim, entremeadas no texto, algumas das muitas poesias e os quatro primeiros títulos lidos de Quintana. Outros e outras ainda virão.

(xii) Das Utopias

“Se as coisas são inatingíveis … ora!

Não é motivo para não querê-las …

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!”

(Antologia Poética – pg. 50)

No calor do verão

Acordei com a chuva batendo na porta arrastando móveis e deixando cair as pratarias.

Alguns cristais se quebraram nesta visita matinal tão bem vinda.

É cedo ainda.

Fui recebê-la com café e wafel congelado. Tostado e amanteigado.

Que falta me fazem as manhãs geladas, cinzas e cheias de raios e trovões.

Voltei pra cama, com o café fumegante nas mãos, aquecida de saudades,

embrulhada de sobre-lençóis, abraçada em Mário Quintana.

Ligo o ar condicionado.

É verão ainda.

Pelo menos, chove lá fora.

O último viandante

“Era um caminho que de tão velho, minha filha,

já nem sabia mais aonde ia …

Era um caminho

velhinho,

perdido …

Não havia traços

de passos no dia

em que por acaso o descobri:

pedras e urzes iam cobrindo tudo.

O caminho agonizava, morria

sozinho …

Eu vi …

Porque são os passos que fazem os caminhos!”

(Quintana, Mário A cor do Invisível, Rio de Janeiro, Objetiva, 2012 – pg 22)

O poeta orienta

“Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos – gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas – que passarão também a fazer parte dos poemas …” (Mario Quintana, Antologia Poética, pg 39)

Convite

Quando vi, dei de cara com o Apêndice d“Os esconderijos do tempo”. Não encontrei nem porões, nem sótãos, e, ah, como eu gosto destes lugares! Passei tão rápido – voraz quem sabe, afoita talvez – que li e mal vi Mario Quintana. Decidi degustar os esconderijos e o tempo com mais parcimônia da próxima vez. O tempo por si só, some. Nos esconderijos, tudo se perde, perdi a leitura. A capa vermelho-fugido rabiscado me convida sorridente, quer mostrar o que não vi.

Apenas guarde ……

Li na semana passada – entre outras coisas – o livro “A Vaca e o Hipogrifo” de Mario Quintana e o artigo “No topo da arte” da revista Cláudia, de setembro. Parece que vieram como Romeu e Julieta, o famoso doce mineiro goiabada e queijo – e quem não gosta? – e acabei fazendo uma associação, quem sabe, profética. No mínimo, previdente. O artigo termina com um comentário do marido de Adriana Varejão – a artista plástica no topo da arte – aconselhando-a a não jogar nada fora e afirmando que “Daqui a alguns anos, você vai gostar. Guarde e espere”. Pedro Buarque, o marido em questão, é colecionador de arte, e deve entender das coisas. Lendo Mário Quintana – e observando a seleção particular do que gostei e não gostei dos seus poemas, prosas e mini prosas –  pensei nos meus projetos, abortos de romances, contos, poemas e ideias recusadas pelo meu crivo atual, e resolvi guardar tudo. Alguma coisa vai para o blog (meu arquivo digital experimental), outras para uma pasta, provisoriamente intitulada, IDEIAS. Quem sabe um dia, eu, ou alguém goste. Porque, dos mais de 200 títulos do livro do Mario Quintana, gostei maximorum de 50 (e estou sendo generosa, pois contei 31 páginas viradas, mas devo ter esquecido de marcar outras de que gostei). Ou não entendo nada de arte ou literatura – e por isso não gosto – ou, um dia vou entender e gostar. Por isso, vou guardar e esperar.