a chuva e o arco íris

Depois da chuvarada 

uma caminhada pela praia.

A mansidão das ondas e a timidez do sol 

lembraram a vida e a morte.

Aquela manhã, recém superada e vencida.

Ultrapassada.

A morte, percebo cada vez mais, 

Imita uma visita aguardada e desejada:

um, parte de forma melancólica, acanhada e tímida.

outro, encerra sua jornada heroica, acabado e agitado,

outros, aparecem de quando em quando.

Entre lágrimas que caem, vários sentimentos.

Conflitos. Hipocrisia. Maledicências.

Me retirei.

Não suportei.

Engatei a vida e segui.  

Retornei à ilha da magia.

O caminho é longo e cheio de surpresas.

O céu faz uma pagelança de sol e chuva, 

nuvens carregadas e passeadeiras.

Quando chove feito a dor que sinto,

reduzo a marcha, agarro o manche, 

levo o nariz e o olhar ao para-brisa.

Preciso ver, cheirar e sentir aquela enxurrada 

e redescobrir o caminho. A estrada.

Depois da chuva torrencial, da escuridão fenomenal,

nuvens brancas sorriem e se engraçam a frente,

revelam vários arco íris: 

completos, duplos, vistosos e discretos.

E lá vinha o negror, a chuva torrencial,

a marcha reduzida, o nariz no para-brisa. De novo e de novo.

A vida se mostrando, a morte rondando.

Num vai e vem constante. Aflitivo e reflexivo.

Próximo ao destino

uma lua cheia, imensa, amarela, pintada de sol

desponta no horizonte e guia o caminho. 

Depois da chuva e do arco-íris, vem o sol.

Na estrada e na vida.

Agora, cato conchas na areia,

me refresco nas águas mornas do mar.

Lembro dos livros que chegaram.

Vou ler Verônica e os pinguins.

Acho. 

A caixa de encomendas veio recheada e diversificada.

A vida também.

Lágrimas de março

Fábio, meu cabeleireiro de 48 anos, morreu. A Covid19 o levou. Desabei. Ele era a felicidade em pessoa. Tínhamos altos papos, éramos da mesma região do RS – quase vizinhos – e falávamos de coisas que eram muito comuns aos dois. Quando soube de sua morte, foi um baque: inacreditável que o Fábio não estivesse mais entre nós. Em 2020, devo ter ido três vezes ao salão. Ele comentou que de cada 10 clientes, 7 haviam desaparecido, inclusive eu. O vi a última vez em novembro/2020. Ele vai fazer falta na minha vida. Ir ao salão e encontrá-lo era uma injeção de ânimo, uma massagem no ego de proporções consideráveis. 

Nesta mesma toada de perdas, estou acompanhando minha amiga Candinha, que sofreu um AVC isquêmico, fazem 3 semanas, e continua em coma. Já foi entubada e neste momento, o maior problema é a septicemia hospitalar. Ela não está nada bem. Todo dia pela manhã ao abrir o whatsapp fico apreensiva. Candinha e eu estreitamos nossa amizade, depois que nossos maridos se aposentaram. Temos muitas coisas em comum, além da paixão pela pintura e cerâmica. Em minhas preces, oro para que ela fique bem. O que necessariamente não quer dizer que fique viva cheia de sequelas neurológicas. Ela odiaria vegetar. Que ela fique bem.

Também morreu minha professora da pré-escola e primeiro ano primário. Edith tinha 89 anos e será sempre uma querida lembrança. Foi ela quem me apresentou os carimbos, as letras, a caligrafia, as palavras, frases, e por fim, o catecismo. Ela, assim como minha mãe, adorava as plantas e a música. Sempre que passo em frente à casa onde ela viveu e envelheceu, admiro o enorme gramado, os agapantos e as strelitzas. Entre tantos professores, Edith é sempre nome lembrado, alguém que fez diferença na minha vida.

Viviane – minha assistente doméstica – ainda não retornou ao trabalho. São 15 dias sem dar sinal de vida. Pelo menos, sei que sua filha se recuperou do trauma físico das mordidas do cachorro. Já os traumas emocionais ainda são uma incógnita. Nestes 15 dias tenho me superado nos afazeres de casa. Todo santo dia é insano.  Amanheço sem saber por onde começar. Onde quer que eu olhe tem algo a ser feito ou providenciado. Quando as pernas não aguentam meu fardo nem meu corpo, espicho o esqueleto e as levanto sobre uma pilha de almofadas. 

Aprendi a não desistir. 

O segredo é descansar e seguir em frente. 

Porque coisas boas e ruins acontecem a todos o tempo todo.

Texto de 28/03/21

Consumação

Esta ideia de consumir com tudo:

Das tintas, linhas e papeis;

Panelas, louças e roupas;

Móveis, tapetes, lustres e livros;

Equipamentos, eletrônicos, Cds, DVDs;

O esgotamento.

A dilapidação e extinção do que delimitou dias e noites da própria existência: 

os sonhos e as ambições.

A dissolução da própria existência.

Misturada que sou à história de tudo e 

todos, que me tornaram este eu apegado e atrelado,

sucumbi ao ouvir herdeira minha dizer:

que desse eu destino à tantas exigências,

a tantas extravagâncias, providências e provas de existir.

Muambeira e sucateira. Arteira. Empilhadeira da arte de viver … 

Sim, se não me apressar

alguém um dia colocará um ponto final, onde insisto colocar pontos e vírgulas.

A antessala do fim. O epílogo de uma vida. 

O arremate final não será meu. Se assim eu deixar acontecer.

Por ora, transformo camisetas em panos de chão;

Armários são reorganizados; espólios doados; 

Especifiquei herdeiros de joias e livros; arte e móveis antigos;

  • tudo ainda amadoristicamente pensando –

Pois é esta a realidade da vida. 

Um dia tudo acaba. 

E, se não quiser que outros consumam com tudo que fui e lutei …

Ainda não ando exatamente atenta aos fatos e atos

O que existe é a ideia. A certeza.

O resto ainda é, 

pura especulação.

Já é um começo do fim.

A indumentária

“Por que os fantasmas sempre aparecem vestidos? Sendo a morte um segundo nascimento, por que não surgem ao natural, tal como vieram a este mundo? Será que o Outro Mundo tem desses puritanismos? Nada disso! É que os fantasmas ficam com vergonha de que a gente descubra que as almas não tem sexo. “

                                    (Da preguiça como método de trabalho – Mario Quintana, p. 79)

Mais que morrer …

Quando eu era pequena perguntava ao meu avô se fazia mal misturar manga com leite, melancia com uva, comer ovo frito à noite, mergulhar nos buracos do rio… e ele, com toda calma do mundo, dizia: “mais que morrer não vai”. Até hoje, lembro das suas palavras. A morte, como ponto final para tudo e para todos, é tão certa quanto minha paixão por café. Diante desta inevitabilidade da vida, vou vivendo do jeito que posso e consigo, com a certeza de que “mais que morrer, não vou.”

A última morada

Ela sempre gostou de flores.

Na morte,

o jardim a acompanhou.

No catre da grande passagem

guirlandas de flores fizeram-se de cabeceira.

Uma despedida coroada de

crisântemos, cravos, rosas, flores do campo,

antúrios, margaridas, astromélias, lírios …

Embalada na suavidade do tule.

Embalsamada em crisântemos brancos e lilases.

A expressão serena e altiva

adornaram seu berço de morte.

A dor, enfim, banida.

A agonia, enxotada.

Na necrópole, para onde a conduzimos a seis braços,

“sete palmos de fundura”,

ramalhetes foram despedaçados,

jogados e sepultados.

O sol como testemunha

As lágrimas do derradeiro e último instante.

Amiga,

segura na mão de Deus,

e vai.

 

 

 

Portal

A morte busca. Avisa. Ronda.

Ela nos encontra. Sempre.

Absolutamente sempre.

Todos estamos em seu caminho.

Não a provoque, não a irrite.

Não lhe chame a atenção.

Nem a deixe perceber a vida que em você habita.

Não abra a porta. Nem lhe dê passagem.

Ela a tudo atropela. E devora.

Respeite-a.

Ela é a única chave do portal para a eternidade.

E ela, sabe.

Morte ansiada

A morte já era esperada

Ansiada e suplicada, até.

O gozo final de uma vida terminal.

Ela era digna de uma morte misericordiosa.

Precisava dar e receber perdão,

Precisava de permissão pra partir

e abandonar a nau de toda uma família.

Já não era mais, nem bússola, nem leme.

Era mais uma âncora ostentando

à deriva,

o barco.

Soltar-se era perder-se do inferno

–  conhecido e protegido –

A expiação de todas as culpas e todos os pecados.

Não há inocentes quando o tormento define quem morre.

A morte traz a promessa de outro caminho.

De preferência que passe longe. Ao largo. A perder-se do horizonte.

Seria um revés grande demais cumprir o mesmo caminho

a mesma sentença de vida na morte.

Imploro aos anjos e demônios:

Que haja caminho na paz e uma vida que respire aliviada

o perfume dos frangipanis e anis estrelados.

A tampa baixa, os parafusos atarraxam.

O ataúde se fecha. Para sempre.

Lacrado abaixo da terra

Fechado por toda eternidade.

cochichos

não sei se abraço a vida ou a morte.

a morte acena cheia de facilidades e finalizações.

xeque mate. ponto final.

já a vida,

impõe sacrifícios e compensações.

um ainda em constante processo.

– o próximo. o seguinte. mais uma, outra vez –

ando tão farta de me exigir e me infligir

perfeição, decepção, dor.

a morte funga meu cangote,

cochicha outras vidas.

Antes de partir

O título é do filme de Morgan Freeman e Jack Nicholson. Assisti ao filme anos atrás e o revi recentemente. Dois homens descobrem que suas vidas tem prazos de validade e decidem fazer uma lista do que eles gostariam de ter feito ou de fazer enquanto ainda estão vivos. Neste meio tempo, soube e fiquei chocada com a notícia da doença de uma grande amiga e conhecida, com o veredicto de câncer terminal. Depois do pâncreas (tratado e curado) os novos exames identificaram metástases no pulmão e nos ossos dos quadris. Não existe cirurgia pra remover ou reduzir os tumores, que nasceram encaixados e inalcançáveis ao bisturi. O tratamento será basicamente medicamentoso e terá como único objetivo amenizar a dor. Minha amiga tem a minha idade, a minha profissão, dois filhos, sonhos, desejos, projetos, e, poderia ser eu. A vida dela tem data de validade: fim do ano. Desmoronei com a notícia. Fiquei sem chão e sem vontade de fazer nada. Fiquei pensando no que eu faria se recebesse tal veredicto e acho que faria algo como os dois personagens do filme: listaria o que gostaria de fazer. Acho. Não tenho certeza. E fiquei pensando nas coisas que eu ainda não fiz e gostaria de fazer.

Sabe que não sei? Tenho a impressão de que fiz praticamente tudo que gostaria de fazer. Existem lugares, comidas, roupas, pessoas, shows, cursos, trabalhos que eu gostaria de conhecer, fazer ou ter. Mas, morreria em paz se não realizasse ou aproveitasse tais coisas.

O essencial teve seu tempo e espaço para acontecer.

Quanto `a lista? Estava pensando … que mochilar pela Europa alguns meses, fazer um curso de mosaico em Friulli na Itália, conhecer o Egito e a Índia, assistir a um show da Shakira e da Sarah Brightman, fazer parte de uma ONG de apoio a animais abandonados … até que seria bem interessante. Tem mais algumas coisinhas …

Raiamos

A morte não é certeza

É escolha.

A gente morre por excesso

ou

falta,

A gente morre por desgosto

ou

paixão,

A gente morre por querer demais

ou

de menos.

Expiram-se planos, projetos, desejos, ilusões, vidas, ciclos.

Afloram outros.

De morte em morte

Alvorecem planos,

Despontam desejos,

Brilham escolhas,

Raiamos .

A vida também é escolha.

A morte quer ser respeitada

Cada início de ano, entre brindes e desejos de paz, saúde, sucesso e felicidades, um cantinho meu se desespera, pensando nas tragédias e perdas irreparáveis que o ano  reserva. Porque, enquanto festejamos, a morte – que não tira férias e não faz ideia do que é ano novo ou ano velho e vive na eternidade – continua trabalhando, tramando, planejando e matando. Os motivos, certamente são muitos. Que critérios ela usa? Posso apenas imaginar. Imagino que alguns ela leve por ser a hora de ir, outros por não merecerem viver, outros por já terem cumprido sua missão, etcetcetc. Mas também acredito que muitos são levados para servirem de lição. São os antigos sacrifícios humanos remixados, costumizados, modernizados e impetrados pela própria morte. Ela quer ser lembrada. Ser levada a sério. Talvez fique fascinada com os dribles e evoluções humanas, na busca incessante de protelar nosso encontro marcado e nos dê algumas chances. Deve deliciar-se com nossa onipotência e ilusão de não sermos reparados, imunes e invisíveis a ela. Eterna ela se faz atenta e sábia. E trabalhadeira. De vez em quando, nos usa para avisar que está viva. E ativa. Na Boate Kiss, de Santa Maria – RS, ela percebeu a audácia humana e mandou seu recado: levou em torno de duzentos e cinquenta jovens universitários, meninos e meninas, cheios de uma vida inteira pela frente. Sentiu-se ultrajada com tamanho deboche e irresponsabilidade: um espaço para 2000 pessoas com apenas uma porta de acesso, sem licença pra funcionar, sem pessoal treinado, sem cuidados com a vida humana, e que funcionou assim, por muitos  e muitos anos; um artista displicente e inconsequente; o poder público que não fez valer suas leis, regras e procedimentos, quem sabe quantos trambiques e acertos rolavam por fora. Em meio a todo este descaso, jovens em busca de diversão e prazer, esquecidos dos perigos do breu da noite e da morte, embriagados de vida. Se ela levasse apenas dois, cinco ou dez, talvez fossem jogados nas estatísticas diárias de humanos acostumados com a imprudência e negligência, a violência, o câncer, os acidentes e outras fatalidades da vida contemporânea. E, nada mudaria. Ela levou muitos – demais até – pra nos lembrar que ela existe e está atenta. Que estes muitos que se foram sirvam de lição para que muitos mais não tenham que ser levados de forma tão precoce e trágica. Que a caça às bruxas que certamente acontecerá nos próximos dias, semanas e meses subsequentes à tragédia de Santa Maria/RS, não acabem em fundos de gavetas, nem em vazios da memória por todo o país. Mais trágico ainda, é saber que horrores como esse já aconteceram e vão continuar acontecendo (Argentina 2004 – 194 mortos; China 2000 – 309 mortos; Russia 2009 – 109 mortos, Estados Unidos 2003 – 100 mortos;  Holanda 2001 – 14 mortos; Venezuela, Tailândia, Japão ….) enquanto não levarmos a vida, e também a morte, à sério.