Perdão

Quando lembro  

do que vivi; 

do que me aconteceu;

do que aconteceu aos outros;

do que tive de suportar;

do que tive de engolir;

do que tive de fugir;

do que permiti que fizessem comigo;

do que senti;

do que menti pra mim mesma;

do que menti para os outros.

Lembro 

da coragem que me abandonou,

do medo que me paralisou,

da vergonha que senti,

da indecisão que me confundiu,

da desesperança que me invadiu,

do ódio que ainda hoje me aleija e que me faz lembrar, 

de tempos em tempos, 

do que eu poderia ser ou ter sido. Quem sabe algum dia, ainda serei.

Quem sabe neste dia, quando olhar para trás,

entenda que tudo que aconteceu, tinha de acontecer.

E que do meu jeito, 

fiz o que pude de melhor.

Sem críticas. Sem comiseração. Sem culpa.

Por enquanto, 

deslembrar me desmembrando tem sido o caminho.

Minha verdade e vida.

Que meus filhos entendam e me perdoem.

Pois, jamais me perdoarei. 

Não existe perdão pra tamanha hesitação.

“Não é mais como antes – elogio do perdão na vida amorosa”

Um livro desconsertante sobre traição e perdão, que não pode deixar de ser lido por  quem quer ou vive relacionamentos longos e duradouros. Recomendadíssimo.

“ Numa época em que tudo parece ir no encalço da sereia perversa do Novo, este livro quer ser um canto dedicado ao amor que resiste e que insiste em reivindicar seu vínculo com aquilo que não passa, com aquilo que sabe perdurar no tempo, com aquilo que não pode consumir-se. Não se ocupa dos enamoramentos que se exaurem no tempo de uma noite sem deixar rastros. Investiga os amores que duram o tempo de uma vida, que deixam marcas, que não querem morrer, que rejeitam a sentença descrente de Freud segundo a qual o amor e o desejo estão destinados a viver separados porque a existência de um (o amor) excluiria necessariamente a do outro (o desejo sexual). Trata daqueles amores nos quais o desejo cresce e não murcha com o passar do tempo, porque amplia eroticamente o horizonte dos corpos dos amantes e, ao mesmo tempo, o do mundo… São os amores movidos por aquilo que o poeta Paul Éluard, citado certa vez por Jacques Lacan, define como “o duro desejo de durar”.” (pg 8/9)

“Pois bem, o que acontece nesses laços quando um dos dois trai, falta à promessa, vive outra experiência afetiva em segredo e em perjúrio? O acontece se, depois, o traidor pede perdão? Pede para se amado ainda e, após ter decretado que não era mais como antes, quer que tudo volte a ser como antes? Afinal, é possível a experiência do perdão quando a promessa foi quebrada com traição e perjúrio por parte de um grande amor? Devemos nos limitar a evocar a sentença freudiana – todo amor é um sonho narcísico, não existe promessa, não existe amor “para sempre”? Será que devemos desprezar o amor? Reconhecer que mais cedo ou mais tarde ele será corroído pelo ímpeto egoísta do ser humano? Devemos considerar as promessas dos amantes e seus votos de eternidade uma ilusão ridícula, um rompante infantil de onipotência ou um verdadeiro delírio? Devemos ridicularizar os amantes em seu esforço de fazer o amor durar? Ou podemos tentar nos confrontar com a experiência da traição, com a ofensa cometida pela pessoa que mais amamos, pela dor infligida por quem, para nós, sempre foi um poderoso conforto? Não deveríamos, quem sabe, experimentar tecer um elogio do perdão na vida amorosa? Mas o que é o perdão na vida amorosa? ( pg 81/82)

“A traição da promessa por parte do Outro destrói a relação de confiança que sustenta o amor. Para quem foi traído e não quer faltar à promessa, só restam duas opções igualmente dignas: perdoar o impossível de perdoar ou experimentar a impossibilidade de perdoar. Permanecer no vínculo graças ao perdão do imperdoável? Ou constatar a impossibilidade de perdoar e viver o fim do vínculo?” (pg 88)

(Não é mais como antes – elogio do perdão na vida amorosa, Massimo Recalcati)

livro

Me perdoa?

  • Amor da minha vida, tudo bem?
  • Tudo bem mesmo?
  • Hã, hã. Por que? Alguma coisa errada?
  • Errada?
  • É. Errada. O que está acontecendo?
  • Acontecendo? Nada.
  • Fala logo. Te conheço.
  • Tá. Liguei pra sua mãe.
  • E?
  • Pedi pra ela ficar num hotel. Eu não aguentaria conviver com ela um mês inteirinho, com você viajando o tempo todo. Você sabe como ela pega no meu pé. Critica tudo. Diz que minha comida é horrível, que parece uma lavagem, que não cuido bem de você. Vive cobrando netos e insinuando que sou estéril e egoísta. Ela me detesta. Você sabe disso, não sabe?
  • Você está exagerando.
  • Exagerando? Eu? Você é um insensível!É fácil falar quando se sai segunda-feira às oito horas e volta no sábado pela manhã. É fácil falar quando se é o filho perfeito e favorito…. o queridinho da mamãe.
  • Isso não é verdade.
  • É verdade e você sabe disso.
  • Em que hotel ela vai ficar?
  • No “Aconchego Inn”. Me perdoa?
  • Na pensão da dona Marcelina?
  • Foi o mais em conta que encontrei. É por um mês, lembra?
  • Mamãe vai me matar! Você tem coragem de me chamar de insensível?
  • Ela vai adorar. Você vai ver. Tem sempre uma fofoquinha….
  • Você já falou pra ela?
  • Mais ou menos. Ela sabe que reservei um hotel pra ela ter mais privacidade. Mas não disse que seria na pensão da Dona Marcelina. Me perdoa?