Eu tinha uma gata preta

Eu tinha uma gata preta.

Amava a gata preta que eu tinha.

Alguém – não sei quem – a tirou de mim.

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Não sei se por maldade, crueldade ou simples falta de humanidade. Acredito que quem envenena gato, cachorro ou outro animal, ou é mau ou é cruel ou tem algo de desumano. A prática é antiga, assim como é tirar os filhotes recém nascidos do ninho e abandoná-los à própria sorte, matá-los à pauladas, ensacar e jogar no lixo, no rio, no penhasco, na esquina, no matagal. Cresci vendo e ouvindo estas histórias, e quando diziam que eu tomasse cuidado com “o homem do saco preto que levava as criancinhas”, lembrava dos gatinhos de olhos arregalados, de pelo espevitado, das patinhas retesadas e unhas medrosas que sumiam do meu esconderijo improvisado entre gavetas, armários e pilhas de madeira e sucata no porão da casa velha onde eu morava. Sabia que o homem do saco preto os havia encontrado e levado. Muito choro depois, mais de vinte gatos sobreviventes perambulando famintos e briguentos pela casa, entendi que era impossível acolher todas as ninhadas que a natureza felina nos presenteava. Os gatos foram morrendo, fui crescendo e só voltei a adotar a July, o Cooki, o Logan e a Nina – já adulta – para dar aos meus próprios filhos, a alegria e a aventura  emocional de conviverem com estes seres sagrados e mágicos na arte do amor incondicional e sem medidas. De todos os animais que tivemos, apenas uma cachorra, a Dátia, morreu de velhice. Todos os outros morreram de forma trágica: quase todos, envenenados. Chorei cada um deles com sangue e dor. A perda sufoca, a saudade doi, as imagens e lembranças invadem nossos dias resgatando momentos maravilhosos, e aí, num puff, tudo acaba. Sobra a tristeza pela espécie humana, capaz de assassinar qualquer espécie, inclusive a própria. Quanto aos animais? Coitadinhos! Basta cruzarem com genocidas maníacos por limpeza e ordem, brutamontes incapazes de amar e entender que todas as espécies tem instintos e necessidades, para que  Hitleres, Sadans Husseins e Slobodans Milosevics de fundo de quintal, arregacem suas  mangas e arquitetem barbáries, usando arapucas, venenos, sacos, cordas e todo um arsenal medieval para não ver mais patinhas nos porcelanatos claros das varandas, plantas amassadas, cocozinhos e xixizinhos esparramados pela grama alheia, sinfonias noturnas … Sinceramente, não consigo imaginar o que pode estimular este lado perverso em pessoas civilizadas, trabalhadoras, pais e  mães de família, a ponto de matar de forma covarde – e infelizmente – impune,  animais domésticos, alegria de tantas crianças e famílias, que veem seus animais como filhos, companheiros, confidentes, verdadeiros amigos e legítimos membros da família.

familia feliz adesivo

Quanto às leis de proteção aos animais? Elas existem. Mas o que esperar delas, se nem as leis que deveriam proteger e punir quem pratica atrocidades contra os seres humanos são cumpridas? E aí me pergunto como posso ter um felino que vai continuar perambulando pelo bairro, respondendo a um comportamento atávico e ancestral, pra cair – de novo – nas mãos de um bárbaro cruel do século 21? De que maneira posso protegê-lo? Prendê-lo numa coleira? Trancafiá-lo em casa? Usurpar sua natureza e essência animal por que animais humanos são intolerantes e crueis e vão, irremediavelmente, envenená-lo de novo? Não, não posso. Por enquanto, não.

nina e susi

Nina estava passando uma temporada na casa de uma amiga que cuidou maravilhosamente bem dela. Obrigada, Suzana. Tenho certeza que ela viveu momentos maravilhosos contigo e com teus filhos e foi muito feliz com a própria mãe e o meio irmão Polenta (apesar das brigas, grunhidos, miados e caras feias). Nina acreditava que todos éramos bons e generosos, verdadeiros amigões. Por mais intuitiva e esperta que fosse, era alma generosa e ingênua que confiava demais. Não dizem que “a curiosidade matou o gato”? Some-se à curiosidade + veneno + crueldade. Este mix acabou com a única vida que ela tinha. Também não dizem que gato tem sete vidas? Não, não tem. Como eu queria que ela tivesse mais seis vidas para gastar!!!!

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Nina voltou pra casa.

Voltou pra eternidade

Ela não esperou por mim.

O tempo dela era diferente do meu.

Perdi ela para sempre.

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Habita em mim a lembrança da escuridão desfilando na noite. A patinha fofa de pelo sedoso de olhares cúmplices e companheiros. Ainda a vejo cruzando a rua, escalando o terreno baldio em frente, mascando capim, se esgueirando pelo mato ralo. Ao retornar, o olhar atento para a direita e para a esquerda. E então, a corrida apressada para casa. Vai que um carro a atropelasse!!!!! Intuía a existência de perigos. Nina era cuidadosa consigo e com os outros. Por mais que eu agisse como uma “Felícia” aloprada, nunca me aranhou ou mordeu pra valer. Brincava que mordia e aranhava, fazia festa com nossas garras, e, num piscar de olhos, saltava do colo e buscava seu próprio espaço. Era gata silenciosa e independente que sumia no dia e na noite, e quando menos eu esperava, estava a meu lado. Fiel, serena e amiga. Ela me faz muita falta.

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Eu tinha uma gata preta

Alguém a tirou de mim.

A pergunta que mais me faço

não é

Quem?

é

Por que?

cartaz para afixar em caso ede envenenamento

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